ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
JUNHO, SÁBADO  14    CAMPO GRANDE 25º

Artigos

Um dia na vida de uma pessoa com depressão de alto funcionamento

Por Cristiane Lang (*) | 27/03/2025 13:30

Para muitos, a depressão se traduz em falta de energia, choro constante e incapacidade de realizar tarefas cotidianas. No entanto, existe um tipo silencioso e devastador: a depressão de alto funcionamento. As pessoas que vivem com esse transtorno conseguem manter as aparências, cumprir obrigações e seguir a rotina, mas por dentro estão emocional e psiquicamente esgotadas.

Vamos acompanhar um dia na vida de alguém que convive com essa realidade.

6h30 - O despertar da batalha silenciosa 

O alarme toca, e a primeira batalha do dia começa: sair da cama. A vontade é permanecer ali, protegida pelo cobertor, longe do mundo. Mas ela respira fundo e levanta. A mente já está pesada, preenchida por pensamentos como “é só mais um dia” e “eu só preciso aguentar”.

Ela segue para o banheiro e encara o espelho. O rosto parece cansado, mesmo após horas de sono. No automático, escova os dentes e lava o rosto, tentando espantar o cansaço que não é físico, mas emocional.

7h30 - A rotina profissional mascarada 

No trabalho, ela é eficiente e produtiva. Os colegas comentam como ela parece organizada e competente. Ninguém imagina que, por trás da postura impecável, existe um esforço quase insuportável para manter a concentração e evitar o colapso.

Cada e-mail enviado e cada tarefa concluída exigem um controle imenso para não deixar escapar o caos interno. As interações são calculadas: sorrisos automáticos, respostas prontas e aquele comportamento padrão que ninguém questiona.

A sensação de vazio é constante, e ela se pergunta repetidamente: “Por que estou fazendo isso?” Mas a resposta nunca vem.

12h00 - Almoço sem apetite 

Na hora do almoço, a comida é apenas uma obrigação. O apetite é inexistente, mas ela se força a comer para evitar perguntas. Quando alguém pergunta se está tudo bem, ela responde com um sorriso ensaiado: “Tudo certo, só um pouco cansada.”

Entre uma garfada e outra, a mente vaga. Por vezes, ela sente vontade de simplesmente sair correndo, escapar de tudo. Mas rapidamente volta ao modo automático, como se seu cérebro tivesse aprendido a desligar a dor para continuar funcionando.

15h00 - A fadiga emocional se intensifica 

A tarde parece interminável. Cada pequena tarefa se transforma em um desafio gigantesco. A exaustão mental é tão intensa que é difícil lembrar detalhes simples. No entanto, ela mantém o ritmo, cumprindo cada demanda como uma máquina que executa comandos, sem refletir ou sentir.

De vez em quando, uma sensação de pânico ameaça tomar conta. O coração acelera e o peito aperta, mas ela respira fundo e reprime a crise, lembrando a si mesma que ninguém pode notar.

18h00 - O retorno solitário para casa 

Ao sair do trabalho, a sensação de alívio é instantânea, mas dura pouco. No caminho para casa, os pensamentos se acumulam, e a máscara começa a rachar. Quando finalmente cruza a porta, ela sente o peso de toda a atuação do dia cair sobre seus ombros.

Joga a bolsa no sofá e simplesmente desaba, às vezes chorando, às vezes apenas encarando o vazio. A casa está silenciosa, mas sua mente é um turbilhão de angústia e frustração.

20h00 - Tarefas domésticas no piloto automático

Mesmo emocionalmente devastada, ainda há obrigações a cumprir: preparar o jantar, arrumar a casa, talvez responder algumas mensagens. Cada tarefa parece um peso imenso, mas ela cumpre tudo mecanicamente, sem entusiasmo nem vontade.

No fundo, pensa em como seria bom simplesmente desaparecer, mas a ideia de deixar tudo para trás traz uma culpa imediata. Afinal, ela tem que continuar. Não pode decepcionar ninguém.

22h30 - O cansaço que não passa 

Deitada na cama, ela revisita mentalmente cada momento do dia. Sente-se uma fraude por manter as aparências enquanto tudo está em ruínas por dentro. A insônia frequentemente a acompanha, alimentada por pensamentos circulares sobre o que poderia fazer diferente, sobre como deveria estar se sentindo melhor.

Por fim, adormece com a esperança vaga de que o próximo dia seja menos pesado. Mas, no fundo, já sabe que o ciclo vai se repetir.

Reflexões finais: o grito silencioso da depressão de alto funcionamento 

A depressão de alto funcionamento é cruel porque engana o mundo e, muitas vezes, a própria pessoa que a vive. A capacidade de manter a rotina faz com que os outros não percebam a gravidade do sofrimento. Isso contribui para o isolamento emocional, já que pedir ajuda parece injustificável para alguém que “aparentemente está bem”. Precisamos compreender que ninguém deve carregar sozinho o peso de uma dor invisível. Reconhecer que mesmo pessoas que “dão conta de tudo” podem estar à beira do colapso é o primeiro passo para oferecer apoio genuíno. Se você se identifica com essa realidade, saiba que não está sozinho. Buscar ajuda não é sinal de fraqueza — é um ato de coragem e cuidado consigo mesmo.

A vida não precisa ser um cumprimento automático de tarefas. Há um caminho para recuperar a vontade de viver e sentir.

(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

Nos siga no Google Notícias