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Um furinho, o brinco e o preconceito

Por Welliton Campos Mendes (*) | 08/10/2013 14:30

Um furinho de nada, do lado esquerdo, nem da para notar se não olhar direito. Furinho pequeno buraco enorme, um buraco que não se vê o fim, não vê os seus extremos, um buraco tão grande que não enxerga sua totalidade, realmente um buracão.

Um baita de um buraco que causei ao fazer um pequeno furo na orelha, um buraco na relação que tenho com minha família, um buraco entre a relação que tenho com as pessoas, um buraco entre meu furinho na orelha e toda uma sociedade e seus olhares investigantes e famintos por uma boa e velha rotulação seguida de exclusão.

Nunca imaginei que tal furo teria tanta repercussão, ou talvez até imaginasse, o que importa é que fiz, achei que ia doer muito, meu amigo Evandro tinha me preparado para um transplante de rim sem usar anestesia, quando fui ver, já estava com o brinco. Uma sensação enorme de liberdade me dominava, uma sensação verdadeira de ser realmente livre, uma sensação deliciosa de fazer e não só falar, de quebrar tabu e de poder usar meu corpo como forma de expressar meus sentimentos e ideais. Daí pouquinho tempo depois essa sensação esvaiu-se, não que tenha passado, apenas fui tomado por outra sensação de culpa ao ver minha mãe chorando, realmente me assustou, com tamanha complexidade posta em um misero furo.

Repensando no assunto, revendo o fato, tentando ser um observador sem muito envolvimento emocional, percebi que eu não estava errado, mas nem minha mãe, ela, uma pessoa um tanto conservadora só quer zelar por minha imagem social, uma imagem que realmente deterioraria na visão de alguns, mas estes alguns (que são muitos) eu não tenho o interesse que fiquem perto de mim, mas também trarão qualidades esse furinho, exclusivamente e principalmente para mim, para me sentir bem.

Após essa reflexão sobre o assunto, percebi que fiz o que tinha de fazer, talvez se não tivesse tanta repercussão eu não faria o furo na orelha, eu busquei por sair do conformismo, sair do molde, sair do padrão da normalidade para ser aceito por quem me “ama” e por aqueles que eu não devo nada, e que também não me devem, aceito por uns que não conheço e nem conhecerei, aceito por estranhos que não vão me excluir se eu ficar igual, ficar no meu lugar. Qual seria esse lugar?

Reconheço que o que mais me atraiu no brinco nem seja o ato de ter uma jóia na minha orelha, mas realmente o tamanho do buraco que essa ação envolve o tamanho do efeito que causaria, dito e feito, uma enorme repercussão para que eu possa ter algo com que me preocupar, uma polemica fresquinha (como diria alguns amigos), algo que eu possa expressar minhas idéias e conseguir alguns ouvidos para ouvirem o que digo talvez minha mensagem não seja captada, mas o que importa é que tentei, tentei dizer, dizer que um furo na minha orelha não muda nada, talvez dependendo da pessoa que estiver lendo esse texto seja difícil de assimilar, mas o fato é que continuei o mesmo, talvez agora seja alguém que incomode, ou talvez esteja até mais bonito.

Não foi por estética que coloquei esse brinco, disto pode ter certeza, foi por ser livre, foi por querer gritar para as pessoas que esse casaco da moralidade que vestimos está há muito tempo fora de moda, para gritar que, não estão pensando ao me criticarem, não estão me entendendo, não estão me vendo, estão vendo apenas o buraco enorme que tem dentro de si mesmo, não conseguem lidar consigo, não conseguem enxergar a outra ponta do buraco onde eu estou.

Qual o preço que pagamos para sermos aceitos na sociedade? Qual é o preço do respeito? Qual o preço da liberdade? Qual o preço a ser pago para sermos livres? Que justificativa plausível alguém pode me dar para descriminar alguém por um furo na orelha?

Vivo em um tempo, em uma sociedade que dita o que é certo, e o que é errado, uma sociedade de respostas, por mais que a filosofia exista, ela não consegue perpetuar no inconsciente coletivo, não conseguimos pensar de forma livre, sempre foi muito mais cômodo termos respostas para tudo, é mais fácil determinar as regras. Sinto como se eu tivesse preso no passado, só que o passado é o presente, meu presente é um passado arcaico, é difícil lidar com uma situação de conviver com gente impiedosa, voraz e machista. Alguém me mande para um futuro que haja vida pensante? Que pense por si próprios?

Todo pré-conceito anda de mãos dadas com a falta de informação, pessoas que descriminam meninos com brincos sabe do mal que estão reproduzindo? Será que sabem que estão sendo peças de um sistema que separa e classificam pessoas pelo seu sexo? Ajudando uma sociedade sexista sempre vigorar e impor sobre as pessoas esse ódio em forma de moralidade? Pessoas ao excluir seus iguais por causa de um brinco não estão apenas demonstrando sua liberdade de gostar ou de não gostar, não é legitima essa opinião, ela é forjada e reproduzida de forma muito menos inocente do que pensamos.

O que é de “hominho”? Eu ao usar um acessório definido “feminino” quebrei uma regra que “deveria” seguir, ao quebrar esta regra as pessoas logo precisam me rotular, somando a falta de informação com o preconceito temos pronta uma receita de descriminação que destrói seres humanos. Quando sai desta norma, eu ofendo quem não arrisca sair e assim como estes que estão nos moldes são maiorias eles reprimem, não é novidade que o ser humano teme o novo, basta que um saia da caverna para que ele passe a ser o louco, mentiroso e perigoso.

Ao furar minha orelha também percebi outra coisa, que meu corpo não é tão meu, pois uma decisão que só desrespeitava a mim virou uma polemica coletiva, quando coloquei o brinco não avisei ninguém, deu vontade fui e fiz. Talvez meu erro fosse esse, será que eu tinha que perguntar no facebook se poderia? Pedir pra minha mãe? Comunicar no meu bairro? Conseguir uma ordem judicial? Não sei.

Ao por meu brinquinho fui recebido pelas pessoas que estavam segurando uma placa com os seguintes dizeres: Bem Vindo a Hipocrisia! Onde o corpo é seu, mas deve usar como a igreja adverte. O corpo é seu, mas deve usar de forma que não fere o Estado. O corpo é seu, mas deve usar de forma que honre sua família. O corpo é seu, mas deve usar da forma que já foi planejado pela sociedade desde seu nascimento.

Aquela hipocrisia que chega dar ânsia de vomito, quando alguém diz “Eu não tenho preconceito”, é uma das piores e a mais usada atualmente, ninguém tem preconceito com nada, contanto que não seja seu filho que use um brinco, seu filho que seja homossexual, sua filha que se prostitui, contanto que nada aconteça comigo eu não sou contra.

Quem diz não gostar de “homem com brinco” seria esta uma opinião legitima? É uma opinião verdadeira e própria? Não. Não é uma opinião própria e vou dizer o porquê, que homem descriminaria uma mulher por usar brinco? O furo do brinco na mulher tem o buraco no tamanho original, um furinho que ninguém se incomoda por que é normal. Já no homem o mesmo furo tem um buraco maior, um buracão dependendo do grupo social, da família, dependendo dos seus valores morais. O que acontece é que, esta opinião de “apenas não gostar” foi forjada por uma longa historia de discriminação, ela foi muito bem colocada no inconsciente coletivo ao associar o brinco no homem a algo sujo, associar isto aos que não são “homens de verdade”, aos que são menos pessoas que nós. Ao ver e achar feio a estética do brinco em mim, antes de enxergar minha aparência às pessoas vê toda uma historia de hipocrisia, vê um estigma muito forte, tudo isso impedem de reparar na aparência real, e ficam na visão embaçada do preconceito.

Desumanizam alguns, o preconceito tem o poder de não só classificar, separar e excluir tem o poder de matar, alguém que era um ser humano, deixa de ser tão humano, o preconceito vem com justificativa de desumanizar alguns, essa justificativa deixa a sociedade isenta de culpa por destruir seres humanos, destruir vidas, destruir sonhos, esse preconceito realmente sempre matou, mata e ainda matará enquanto reinar a ignorância.

Para concluir quero deixar aqui que continuo com meus sonhos, meus ideais, meus projetos, meus sentimentos, continuo o mesmo, como fosse uma pessoa normal, uma pessoa como você, um ser humano, o que mudou no meu corpo foi um furinho, e deixo aqui minhas palavras para dizer que temos que trabalhar nossos preconceitos, tirar essa ignorância do peito que nos cega e nos limita, e começar a pensar como humanos diversos e com inteligência.

(*) Welliton Campos Mendes, acadêmico de Ciências Sociais da UFGD.

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