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Cidades

Banca formada por brancos pode avaliar cotistas? Entenda a heteroidentificação

Lei que estabeleceu cotas foi criada há 11 anos, mas critérios e formação das comissões ainda levantam dúvidas

Por Silvia Frias | 02/07/2025 14:51
Banca formada por brancos pode avaliar cotistas? Entenda a heteroidentificação
Na avaliação dos cotistas, candidato é filmado ou fotografado, sendo avaliado por comissão (Foto: Henrique Kawaminami)

Soraya, 29 anos, chegou cedo na sede da Fertel (Fundação Jornalista Luiz Chagas de Rádio e TV Educativa de MS), no Parque dos Poderes, para ser submetida ao processo de heteroidentificação, na seleção para contratação temporária, realizada em junho deste ano. Perto do horário da avaliação, um grupo de pessoas passou pelos candidatos.

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Soraya, 29 anos, participou de um processo de heteroidentificação na Fundação Jornalista Luiz Chagas, onde se sentiu incomodada ao ser avaliada por uma comissão composta apenas por pessoas brancas. A legislação brasileira, que reserva 30% das vagas em concursos para negros, ainda gera dúvidas sobre a formação das comissões. A advogada Larissa Brandão explica que a cor do avaliador não impede sua participação, desde que tenha conhecimento na área. A falta de representatividade negra nas comissões reflete desigualdades estruturais, especialmente em cargos de decisão. A transparência nos critérios de avaliação é essencial para evitar injustiças.

“Até brincamos sobre a possibilidade de serem os integrantes da banca. Pois dito e feito”, contou a candidata, que preferiu não ter o nome divulgado. “Virou até brincadeira ali entre a gente, na hora, porque todos eles eram brancos”, disse. O caso chegou à redação por meio do canal Direto das Ruas.

A comissão de heteroidentificação é voltada para avaliar a autodeclaração de pessoas negras (pretas ou pardas), que se candidatam em vagas de concursos, universidades ou processos seletivos, por meio das cotas raciais.

A avaliação em concurso ou processo seletivo é rápida e foi assim com Soraya. “Mandaram que eu me sentasse, um auxiliar mandou colocar a mão na perna e bateu uma foto. Depois, explicaram que eram da banca e iam comprovar a negritude informada”, lembrou. “Me olharam, se olharam, anotaram algo no papel e me liberaram”.

A candidata diz que se sentiu incomodada pela situação, pela avaliação ter sido feita por comissão formada por pessoas brancas.

Há 11 anos, a lei federal 12.990/2014 havia estendido a política de cotas raciais para concursos públicos federais, reservando 20% das vagas para candidatos negros. Desde junho deste ano, nova legislação (Lei 15.412/2025) alterou o percentual, sendo fixado em 30% e ampliando a reserva para indígenas e quilombolas.

Mesmo com mais de uma década de vigência, a legislação ainda gera dúvida sobre a formação das comissões e que critérios usam para avaliar o candidato.

A advogada Larissa Brandão, conselheira da OAB/MS (Ordem dos Advogados do Brasil) e professora de cursinhos preparatórios explicou ao Campo Grande News que o fenótipo do avaliador não é impedimento para participar da comissão. “Se ele tem no currículo um conhecimento específico, trabalha na área, é uma pauta de trabalho, isso não o desabona”, disse.

Banca formada por brancos pode avaliar cotistas? Entenda a heteroidentificação
Edital da UFMS com o currículo dos integrantes da comissão avaliadora, um deles, branco (Foto/Reprodução)

Larissa explica que a Lei de Cotas não trouxe os critérios da formação da comissão avaliadora, mas portarias publicadas posteriormente regularam a lei. Uma delas é a de nº 4, de 6 de abril de 2018, que não considera um impeditivo o avaliador ser branco, desde que tenha formação ou conhecimento comprovado na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.

A ausência de representatividade negra nas próprias comissões ainda reflete os resquícios da desigualdade estrutural, que se manifesta em diversas esferas, especialmente na baixa presença de pessoas negras em cargos de decisão.

Um exemplo é no Judiciário, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) divulgados no ano passado. No Brasil, apenas 14,25% dos juízes se autodeclaram negros; entre os servidores do Poder Judiciário, o índice é de 27,1%. A Justiça Eleitoral (18,1%) é o ramo com o maior percentual de magistrados negros, seguido pela Justiça do Trabalho (15,9%), Justiça estadual (13,1%), Justiça Federal (11,6%) e Justiça Militar (6,7%).

Uma alternativa é que os editais tragam o nome ou a formação do integrante da banca examinadora. No caso do processo seletivo da TVE, a reportagem buscou no Diário Oficial do Estado e não encontrou a composição da equipe, somente a informação, no edital, de que haveria a checagem da autodeclaração feita pelo candidato no ato da inscrição.

Larissa afirma que divulgar o nome dos integrantes da banca não é o mais importante, mas sim tornar públicos os currículos e os critérios que serão utilizados na avaliação, o que contribui para a transparência do concurso.

Em pesquisa feita pela reportagem em concursos organizados pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) os editais publicam a composição da comissão, sem os nomes dos integrantes, mas com a formação profissional e o “letramento racial”. Na UFMS, ainda consta a informação prévia, antes mesmo da avaliação do cotista, se o integrante da comissão é branco ou negro.

No concurso do TJMS (Tribunal de Justiça de MS), em 2024, a banca era formada por maioria negra, conforme relembra outro candidato, de 38 anos. "A gente sabe que é negro, mas não deixa de ser um ato de cerimônia e apreensão. Mas o fato de ver tanta gente preta na sua frente, dá uma segurança", admitiu.

Banca formada por brancos pode avaliar cotistas? Entenda a heteroidentificação
Militante negro, cientista político Gustavo Amora, recorreu ao TRF após ter sido reprovado na avaliação, no "Enem dos Concursos" (Foto/Arquivo pessoal)

O que olham? – Na maioria dos editais pesquisados pela reportagem, consta que a comissão analisa o fenótipo do candidato, ou seja, as características físicas, “que permitem sua identificação no curso das relações sociais regulares, como negro, abrangendo-se os pretos e os pardos”. Em regra, não se aceita o critério de ancestralidade, ou seja, se pais ou avós são negros, mas o candidato é branco.

O candidato cotista que avanço no concurso é o que tem a autodeclaração deferida por maioria.

Olha-se, por exemplo, a textura dos cabelos, cor dos olhos, cor da pele, estrutura corporal e até altura. São nesses quesitos, que variam conforme a instituição responsável pela verificação, que a subjetividade pode levantar questionamentos.

Não raro, há casos que vão parar na Justiça. Em janeiro deste ano, o cientista político Gustavo Amora, militante do movimento negro de Brasília, entrou com uma ação na Justiça Federal após o primeiro CNU (Concurso Nacional Unificado) indeferir sua candidatura pela reserva de vagas a pessoas negras. Autodeclarado pardo, ele acusou a banca de ignorar critérios objetivos e documentos durante sua avaliação. Em fevereiro, conseguiu decisão judicial favorável.

“Cada caso é um caso, existe possibilidade da falha humana e pode ser levantada pelo Judiciário”, diz Larissa Brandão. Mas, a advogada enfatiza. “A cota é reparação histórica, a gente precisa de políticas públicas para ter pessoas diversas. Então, é preciso conversar, fazer edital com critérios mais sensíveis, para evitar eventuais injustiças; existem falhas, mas seria muito pior não tivesse a reserva de vagas”, afirmou.

A reportagem entrou em contato com o governo do Estado, para saber qual a composição da banca do processo da TVE, mas não obteve retorno até o fechamento do texto.

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