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Cidades

Judicialização da saúde: da briga por fraldas a paciente de R$ 1,2 milhão

A luta de quem nasceu estatística, a pressão nos cofres públicos e os caminhos para melhorar a vida dos pacientes

Aline dos Santos | 20/05/2019 11:39
Daniel tem sete anos e precisa de medicamento que custa R$ 1,2 milhão por ano. Ao lado do filho Karin, precisou recorrer à Justiça. (Foto: Paulo Francis)
Daniel tem sete anos e precisa de medicamento que custa R$ 1,2 milhão por ano. Ao lado do filho Karin, precisou recorrer à Justiça. (Foto: Paulo Francis)

Daniel nasceu estatística. Logo no primeiro ano de vida, quando não conseguiu mais se manter de pé, descobriu-se que era o “um” a cada dez mil nascidos vivos com diagnóstico de Ame (atrofia muscular espinhal), doença degenerativa que esgota a força muscular, inclusive da respiração e deglutição, e pode levar a morte em poucos anos.

Numa sequência de procura por cura, tristeza e perseverança, os pais encontraram esperança num medicamento de última geração e que, no ano passado, após considerável queda do preço, tinha custo R$ 1,2 milhão por seis doses.

Mas enquanto o pranto se fez riso para quem luta pela vida de um filho, o preço da medicação acendeu o alerta nos cofres públicos, sempre pressionados por outra cortante realidade: não vai ter dinheiro para todo mundo.

No caso de outros dois pacientes, também diagnosticadas com Ame, a Prefeitura de Campo Grande chegou a ter R$ 10 milhões bloqueados pela Justiça. Mas a Saúde não vai parar na Justiça exclusivamente por valores milionários. Um dos exemplos mais corriqueiros é a compra de fraldas geriátricas. Situação classificada como humilhante por juiz ouvido pela reportagem.

Polêmica, a judicialização, que tem como pano de fundo a luta de quem precisa e lobby da indústria farmacêutica, se conta, a partir de agora, em muitas vozes, com paciente, juiz, defensor público, procurador e advogado.

Doses de ataque

Quando Daniel, 7 anos, perdeu os movimentos das pernas ainda bebê, Karin Martins dos Santos, 36 anos, morava em Costa Rica, a 305 km da Capital, e começou sua corrida por explicações. Depois de ouvir até que o filho teria preguiça de andar, obteve em Campo Grande o diagnóstico perturbador. A suspeita era de Ame, confirmada depois em exame de DNA feito em São Paulo.

“A gente sabia que a doença não tinha cura, apenas tratamento paliativo para melhora a qualidade de vida dele, com acompanhamento de equipe multidisciplinar”, conta a mãe. Aos três anos, Daniel já estava na cadeira de rodas. 

No ano de 2017, a família foi à Justiça Federal em busca do Spinraza, medicamento para a Ame aprovado nos Estados Unidos.

Karin viu filho perder o movimentos da perna com pouco mais de um ano de idade. (Foto: Paulo Francis)
Karin viu filho perder o movimentos da perna com pouco mais de um ano de idade. (Foto: Paulo Francis)

“Não era a cura, mas poderia estabilizar a progressão da doença, com grande diferença na vida dele. Era a chance do meu filho não chegar ao estado vegetativo”.

A ação deu entrada na Justiça em junho de 2017 e, dois meses depois, foi autorizado o fornecimento da medicação. Com valor de R$ 1.261.332,15 na nota fiscal, o medicamento chegou um ano depois.

As seis doses iniciais, chamadas de doses de ataque, começaram a ser aplicadas em agosto do ano passado. Para a aplicação, o menino vai ao hospital, onde passa por procedimento de punção lombar. As três primeiras doses foram aplicadas com intervalo de 15 dias. “O processo é doloroso e ele só tem 7 anos”.

A sexta dose está guardada no hospital para ser utilizada em agosto. Depois, o menino vai precisar do medicamento a cada quatro meses.

“Melhorou muito. Percebi a formação de músculos e movimentos que ele não fazia antes. Aperta a mão da gente, come sozinho. Da última vez que foi ao sushi, que ele adora, já conseguiu segurar sozinho o palitinho. São pequenas coisinhas que fazem diferença”, diz a mãe, encantada a cada pequeno gesto de autonomia.

Para Karin, a grande vitória vai acontecer quando Daniel conseguir abandonar o aparelho que usa para respirar a cada noite de sono.

Poderia ser o seu filho

Invocando o artigo 196 da Constituição Federal, que define que a saúde é direito de todos e dever do Estado, o advogado Jairo Pires Mafra move ações nas Justiças de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Minas Gerais em nome de pacientes com Ame em busca de medicamento.

Em Mato Grosso do Sul, além do caso de Daniel, ele representa outras duas pacientes. No caso delas, também tem ação na Justiça Estadual, em que cobra que o medicamento seja pago pelo plano de saúde.

Jairo é advogados de três pacientes com doença rara em MS. (Foto: Paulo Francis)
Jairo é advogados de três pacientes com doença rara em MS. (Foto: Paulo Francis)

“A gente fica envolvido emocionalmente, parece que vai morrer com a criança se o pedido é negado. Poderia ser o seu filho”, diz. 

As pacientes receberam o remédio da prefeitura de Campo Grande e do governo federal. Esses processos são na Justiça Federal. O advogado reclama da demora e dos subterfúgios para atrasar o processo, como novas perícias médicas. “Na minha ótica, não é necessário mais exames de DNA comprovando, quando tem prescrição médica. Também questionam a eficácia do medicamento”, afirma.

Ele explica que há apenas essa medicação, ou seja, não seria uma forma de privilegiar determinado laboratório. O medicamento foi autorizado nos Estados Unidos e Europa. No mês passado, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou que a medicação será incorporada ao SUS (Sistema Único de Saúde) para a Ame tipo 1. Neste caso, o paciente deve apresentar sintomas nos primeiros meses de vida.

O Ministério da Saúde também estuda a incorporação do Spinraza na modalidade compartilhamento de risco, o que incluiria também outros subtipos da doença: o tipo 2 (início dos sintomas entre 7 e 18 meses de vida) e o tipo 3 (início dos sintomas antes dos 3 anos de vida e 12 anos incompletos).

Neste formato, o governo só paga pelo medicamento se houver melhora da saúde do paciente. Conforme o ministério, 90 pacientes no Brasil foram atendidos no ano passado, a partir de demandas judiciais que solicitavam a oferta do Spinraza, ao custo de R$ 115,9 milhões.

Medicamento de custo milionário demorou um ano para ser entregue a paciente. (Foto: Paulo Francis)
Medicamento de custo milionário demorou um ano para ser entregue a paciente. (Foto: Paulo Francis)

Bloqueio de R$ 10 milhões 

O medicamento de alto custo para o tratamento da atrofia muscular espinhal já levou ao bloqueio de R$ 10 milhões da prefeitura de Campo Grande, por ordem da Justiça Federal em duas ações. O episódio foi em 2017 e a PGM (Procuradoria-Geral do Município) conseguiu reverter a decisão no TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região). Na época, o tratamento de dois pacientes custaria perto de R$ 4 milhões por ano.

A prefeitura justificou que o bloqueio se chocava com o orçamento e os compromissos assumidos com a coletividade. “Deste modo, ao se garantir o direito de um único indivíduo, são sacrificadas outras garantias constitucionais, de interesse coletivo”, sustentou a procuradoria.

“É difícil ver o paciente em tratamento, sofrendo, mas o recurso da Fazenda Pública é limitado. O que os municípios buscam hoje é o socorro da União, que o Ministério da Saúde albergue os medicamentos de alto custo. Senão, quebra os municípios”, afirma a procuradora municipal Viviani Moro.

No ano passado, a prefeitura gastou R$ 23,2 milhões com a judicialização da saúde. Em 2018, a administração municipal reservou R$ 15,7 milhões para as ações judiciais e teve outros R$ 7,5 milhões bloqueados.

“Faz uma reserva, mas a demanda é crescente, só aumenta. Para esse ano, a reserva é de R$ 16 milhões, fora os gastos com as ações diárias de saúde”, afirma a procuradora. Se o remédio ou procedimento não fizer parte da lista do SUS, a prefeitura não pode retirar recursos do Fundo Municipal de Saúde e o custo é pago com verba do Tesouro municipal. Caso contrário, o gestor terá que responder ao TCE/MS (Tribunal de Contas do Estado).

Em 2019, a Defensoria Pública realizou 10.977 atendimentos na área de saúde. (Foto: Marina Pacheco)
Em 2019, a Defensoria Pública realizou 10.977 atendimentos na área de saúde. (Foto: Marina Pacheco)

Saúde não tem preço, mas tem custo

Na Defensoria Pública, que move as ações em nome dos pacientes sem condições financeiras de pagar advogado, os pedidos mais caros são de medicamentos para tratamento do câncer, com custo de R$ 20 mil por mês.

Mas as necessidades são variadas: insulinas diferentes da oferecida pelo SUS para controle da diabetes, medicamentos para depressão, osteoporose, lúpus, trombose, doença pulmonar crônica. De acordo com o defensor público Hiram Santana, os pedidos também avançam para consultas, internações, cirurgias, dietas, fraldas e home care (cuidados em casa).

“Quanto mais o SUS está em dificuldades, maior é a procura dos serviços Defensoria. Como o momento é de crise na economia, desemprego, as pessoas não têm condições de custear despesa com saúde privada e se tornam usuárias do SUS. E o SUS não dando conta de cumprir as obrigações leva a pessoa se socorrer dos serviços da Justiça”.

Além de entrar com os processos pedindo o atendimento ou remédio, é comum que os poder público não cumpra, exigindo uma nova ação, desta vez exigindo que a decisão seja aplicada.

Em geral, a Justiça tem maior inclinação para deferir pedidos com cobertura pelo Sistema Único de Saúde, como, por exemplo, as consultas. Já medicamentos de alto custo e fora da lista da rede pública exigem informações detalhadas da necessidade.

Até 60 salários mínimos (R$ 59.8800), as ações são encaminhadas para os Juizados Especiais. Nesta situação, se enquadram 90% dos pedidos de ajuda que chegam à Defensoria Pública. As de maior valor chegam a R$ 400 mil, relativa a tratamento anual com medicamento oncológico.

Defensor público Hiram Santana afirma que pedidos incluem remédios, consultas e cirurgias. (Foto: Paulo Francis)
Defensor público Hiram Santana afirma que pedidos incluem remédios, consultas e cirurgias. (Foto: Paulo Francis)

Saúde não tem preço, mas tem custo. O poder público precisa se organizar para proporcionar, da melhor forma possível, o acesso para todos, especialmente, para as pessoas mais vulneráveis”.

Em 2019, a Defensoria Pública realizou 10.977 atendimentos na área de saúde. No ano passado, o total chegou a 26.193 atendimentos. As principais demandas são medicamentos, cirurgias e exames.

Simples e humilhante

Desde o começo do ano no Juizado da Fazenda Pública, o juiz José Henrique Kaster Franco, esbarrou no que acredita ser um dos maiores índices de judicialização da saúde no Brasil.“No juizado que estou, são 13 mil processos e a cada dia entram muito mais”, afirma o magistrado.

Os esforços serão concentrados para reduzir os processos, por meio de uma Câmara de Conciliação da Administração Pública. Neste modelo, o Poder Executivo vai fazer licitação e comprar os medicamentos mais procurados e que, em geral, a Justiça defere o pedido do paciente.

Desta forma, em vez de a questão ir parar no Poder Judiciário, o paciente vai buscar a Defensoria Pública, que solicitará o medicamento ao Poder Executivo. O remédio seria entregue após triagem com médicos.

Segundo o magistrado, além de eliminar a via-crúcis do paciente, a compra em grande quantidade vai ajudar o governo a reduzir custos, ao arcar com compra individualizada por paciente.

“Apenas as licitações complexas, medicamentos de altíssimo custo e tratamento mais caros, onde houver divergência entre a Defensoria e a Procuradoria-Geral do Estado, serão levados para o Judiciário”, afirma o magistrado. A formação da câmara de conciliação é debatida com procuradoria, secretaria de Saúde e setor de compras do governo do Estado.

No contato diário com as demandas dos pacientes, o juiz não deixa de se impressionar com os pedidos mais simples. 

Juiz quer reduzir processos por meio de Câmara de Conciliação da Administração Pública. (Foto: Kisie Ainoã)
Juiz quer reduzir processos por meio de Câmara de Conciliação da Administração Pública. (Foto: Kisie Ainoã)

“A gente lida com tudo que é situação. Mas talvez a que me chame mais atenção é o caso mais simples, as fraldas geriátricas. É humilhante ter que vir ao Judiciário para pedir fraldas”, afirma.

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