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Capital

Em 114 anos de história, o dia em que o mundo acabou e o trem assassino

O Campo Grande News volta no tempo para contar as tragédias que marcaram a cidade

Aline dos Santos | 23/08/2013 07:00
Há 22 anos: explosão arrastou Fusca e destruiu casas. (Foto: Reprodução)
Há 22 anos: explosão arrastou Fusca e destruiu casas. (Foto: Reprodução)
Em 114 anos de história, o dia em que o mundo acabou e o trem assassino

Um estrondo rompeu o silêncio da madrugada na Vila Jacy. Era 25 de outubro de 1990 e para quem despertou sobressaltado não restava dúvidas: o fim do mundo havia chegado a Campo Grande.

Foi preciso muitas horas, histeria, susto e pânico para constatar que a explosão que sacudiu o bairro e foi sentida em outras regiões da cidade não se tratava de ataque terrorista de Saddam Hussein nem de queda de avião ou do apocalipse.

O epicentro foi o depósito clandestino Caderfogos, que conforme divulgado à época, escondia uma tonelada de pólvora utilizada para fabricação de morteiros e fogos de artifícios. Passados 22 anos, Ione Fuji recorda o terror vivido nas primeiras horas daquela quinta-feira.

“Estava em casa com meus dois filhos, quando ouvi um barulho. Achei que era a fiação elétrica. Mas, depois, caiu o lustre do quarto, depois, da sala. A casa começou a tremer”, relata Ione, 66 anos. Ela mora há 38 anos na Rua Brigadeiro Tobias, a uma quadra do local da explosão.

Enérgica, recolheu os filhos e pensou em sair. Contudo, ao abrir as portas viu pedaços das casas caindo com a força da explosão. O único recurso foi se esconder debaixo  de uma mesa. “Pensei até que era o Saddam Hussein. Só depois que lembrei do depósito de fogos”, conta. Na época, o mundo acompanhava a tensão entre Iraque e Kuwait, no Oriente Médio.

Cenário de destruição levou a boatos de queda de avião ao fim do mundo. (Foto: Reprodução)
Cenário de destruição levou a boatos de queda de avião ao fim do mundo. (Foto: Reprodução)

O desespero levou uma multidão sem rumo para a rua. “Era mulher passando de camisola, homem de cueca, criança correndo”, relata Ione. Com as lembranças ainda frescas na memória, ela conta que nem teria como esquecer. Na época, enfrentava uma turbulência pessoal, agravada pela explosão. “Tinha acabado de me separar. Estava desempregada, sem dinheiro e sem-teto”, rememora. Com o impacto, o telhado da casa caiu.

“Os vidros do vitrô caíram para o lado de fora da casa. Um engenheiro explicou que foi efeito da pólvora”, relata. Duas décadas depois, as casas das imediações sofrem com afundamentos do solo e rachaduras. “Faço reforma todo ano. Quem sabe, não compra casa aqui. Geralmente, vendem para paulista”, diz.

Um Fusca despedaçado – A explosão, por milagre, não deixou feridos. A única vítima fatal foi um cachorro, mas a lembrança mais marcante é a de um Fusca vermelho que atravessou dois muros e foi parar dentro de uma igreja. O inusitado da cena é recordada por Maria Barbosa da Costa, 79 anos, mãe do proprietário do carro. O fusquinha acabou no ferro-velho. Já as fotos e o jornal ficaram para a posteridade.

“Foi uma noite quente, difícil de dormir. De repente, escutei um barulho, pipoco, pipoco e não sabia o que era. Na hora, a gente pensou que o mundo acabou”, relata Maria, cuja casa era bem próxima ao depósito. Parte do imóvel ficou destruída e móveis foram queimados. “Queimou o enxoval das meninas, tudo dentro do guarda-roupa”. Na hora do susto, ela e mais cinco pessoas buscaram proteção no banheiro, de onde foram retirados pelos bombeiros.

Ione conta que rachaduras constantes são heranças de explosão ocorrida há duas décadas. (Foto: Marcos Ermínio)
Ione conta que rachaduras constantes são heranças de explosão ocorrida há duas décadas. (Foto: Marcos Ermínio)
Família guardou jornal para a posteridade. (Foto: Reprodução)
Família guardou jornal para a posteridade. (Foto: Reprodução)

No mais, foi agradecer a Deus pela sorte de estarem vivos e contabilizar prejuízos. Roseni Barbosa da Costa, 45 anos, lembra que foi por pouco. “O guarda da escola salvou minha sobrinha quando o fogo já tinha chegado no colchão onde ela dormia”, diz. Os moradores contam que não receberam indenização. “Já ficou sem nada. Não tinha dinheiro para pagar advogado”, afirma Roseni. Foram 154 pessoas afetadas. Hoje, o depósito virou uma residência.

Tenebroso – Pedaços de parede no meio da rua, pessoas chegando em busca de parentes, a descrença de que tamanho estrago não tivesse feito vítimas e um clima histérico no ar. O quadro compõe as memórias do capitão Lenirdo Pedroso Almeida, do Corpo de Bombeiros.

“Foi uma noite quente, difícil de dormir. De repente, escutei um barulho, pipoco, pipoco e não sabia o que era. Na hora, a gente pensou que o mundo acabou”, conta Maria. (Foto: Marcos Ermínio)
“Foi uma noite quente, difícil de dormir. De repente, escutei um barulho, pipoco, pipoco e não sabia o que era. Na hora, a gente pensou que o mundo acabou”, conta Maria. (Foto: Marcos Ermínio)

De folga e em casa, no bairro Aero Rancho, ele ouviu e sentiu o impacto da explosão. Depois de obter as primeiras informações com a central, rumou para o local com outro colega de profissão. “Chegamos junto com a primeira viatura. Era muita destruição. As pessoas em pânico, o risco de desabamento”, relata.

Foram horas de apreensão. “Era tenebroso. As pessoas corriam desesperadas. Graças a Deus não houve vítimas. Mas, no começo, as pessoas não acreditavam”, conta. Naquela época, o procedimento de socorro era outro. Sem macas, as pessoas eram retiradas no colo. “Isolamento, como? Não tinha como impedir uma mãe à procura do filho de entrar em casa”, rememora.

Seis anos depois, já lotado no centro de operações, o capitão Pedroso foi testemunha, desta vez à distância, da maior tragédia recente da história de Campo Grande. Entrava em cena o trem assassino.

Sete mortes nos trilhos – Onze vagões desgovernados bateram em ônibus, caminhão-guincho e carro em 29 de março de 1996, uma fatídica sexta-feira nos 114 anos de história da cidade. Soltos e carregados com soja, os vagões percorreram oito quilômetros entre a estação Manoel Brandão até a avenida Afonso Pena. No caminho, sete mortes e 31 feridos.

“Eles passaram pela passagem de nível da avenida Costa e Silva onde atropelaram e arrastaram um ônibus da linha Roselândia, matando cinco passageiros, em seguida, já com velocidade de 100km/h, passaram sobre um caminhão-guincho, esmagando o motorista Ageu Nascimento”, informa a edição de 30/31 de março de 1996 do jornal Correio do Estado. A sétima vítima morreu depois.

A tragédia estampada na capa de jornal
A tragédia estampada na capa de jornal

Do ônibus, seis mulheres morreram: Vilma da Silva, 30 anos; Maria Alice Raimundo, 46 anos, Cláudia Regina Dias Vianna, 19 anos; Elisabete Oliveira, 39 anos; Sandra Maria Espíndola, 35 anos; e Zenaide Pereira Dias, 41 anos.

Próximo ao Parque Laucídio Coelho, testemunha relatou que o mecânico Ageu Nascimento atravessava os trilhos com cuidado. Porém não conseguiu evitar o acidente, morrendo na hora. O caminhão F-400 rebocava uma Saveiro, que levantou voo e foi parar a mais de cem metros.

No trajeto, a composição ainda colidiu com um Monza, na rua 15 de Novembro. O terror só cessou quando três vagões descarrilaram perto da Afonso Pena.

“Na época, chegou a notícia dede que um trem tinha pegado um ônibus na Costa e Silva, perto do Atacadão”, conta o fotógrafo Izaías Medeiros, que registrou as imagens que no dia seguinte iria desconcertar os campo-grandenses. “Foram 14 anos de jornalismo diário e foi a maior tragédia, em número de mortos, que já fotografei dentro da cidade”.

De imediato, a quantidade de feridos acabou com o estoque de sangue do HU (Hospital Universitário). Na região do Centro, o congestionamento durou cinco horas. Nos dias seguintes, novos desdobramentos.

Sobre o motivo do acidente, foi apontado de sabotagem à negligência. A tragédia reacendeu o pedido, que já perdurava desde a década de 1960 para a retirada dos trilhos do perímetro urbano, medida que só foi concretizada em 2004.

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