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Capital

No bairro que fica com o lixo da cidade, a resistência de quem sonha

A força de quem se move contra a pobreza e o esquecimento do poder público

Aline dos Santos | 10/12/2015 14:25
Mimetismo: menino até "some" em chão de roupas. (Foto: Marcos Ermínio)
Mimetismo: menino até "some" em chão de roupas. (Foto: Marcos Ermínio)
" o poder público só faz o básico. Mas vai passando o tempo e a população vai aumentando", diz líder comunitário.  (Foto: Marcos Ermínio)
" o poder público só faz o básico. Mas vai passando o tempo e a população vai aumentando", diz líder comunitário. (Foto: Marcos Ermínio)
Elaine espera há um ano por vaga em Ceinf para o filho Samuel. Se pudesse, ela deixaria o bairro. (Foto: Marcos Ermínio)
Elaine espera há um ano por vaga em Ceinf para o filho Samuel. Se pudesse, ela deixaria o bairro. (Foto: Marcos Ermínio)

De periferia e lembrado como bolsão de pobreza, o Bairro Dom Antônio Barbosa mexe com os sentidos. Onde a vista alcança, os olhos se deparam com um império do lixo; o olfato sofre com mau cheiro nauseante; os ouvidos se surpreendem com o som que brota do criativo “tambor lata”; no tato, o caloroso aperto de mão da babá que garimpa peças em meio a um chão de roupas descartadas.

Os retratos de uma manhã de quarta-feira é o dia a dia de 1.500 famílias do bairro criado em 1995 e que traz no nome a homenagem ao primeiro bispo de Campo Grande.

As privações de um local a 15 quilômetros do Centro se mostram na falta de rede de esgoto, asfalto somente nas linhas de ônibus, posto de saúde que não tem médico no fim de semana, criança que espera há um ano vaga na creche. Entre os moradores, a vontade de que o poder público se lembre do Dom Antônio e o bairro de duas décadas, perto do Lixão desativado e do aterro sanitário, supere a sina de ficar com os rejeitos da cidade

“É um fedor danado, uma catinga. Às cinco horas da tarde você não suporta isso aqui. Tem que ir para o banheiro e vomitar. Já veio reportagem falar que é o bairro mais pobre de Campo Grande. Aí, como se diz, sendo o mais pobre, vamos jogar troço que não presta”, conta o pedreiro Ariovaldo Martins de Souza, 47 anos. Ele mora há seis anos em uma das poucas ruas asfaltadas e em frente a única praça dos cinco bairros da região.

O mau cheiro que espalha indignação por todas as casas é atribuído a uma empresa de adubos, o lixo, aos porcalhões. Na rua Leopoldina de Queiroz, que margeia propriedades rurais, sacolas, pneus, resto de material de construção vêm tanto de moradores quanto de “forasteiros”.

Apesar do caminhão de coleta passar três vezes na semana, muitos preferem deixar o lixo quase no quintal da casa de Ester Martins, 47 anos. Ela conta que é cobradora, mas ganhou uma nova função. “Eu e o vizinho viramos enterradores de cachorro”, diz. Os animais mortos são jogados no local e acabam sendo sepultados por quem não suporta tanto mau cheiro.

Placa de trânsito decorada a tiro em rua do Dom Antônio. (Foto: Marcos Ermínio)
Placa de trânsito decorada a tiro em rua do Dom Antônio. (Foto: Marcos Ermínio)
No bairro criado em 1995, só tem asfalto na linha do ônibus. (Foto: Marcos Ermínio)
No bairro criado em 1995, só tem asfalto na linha do ônibus. (Foto: Marcos Ermínio)
Lixo se acumula na rua Leopoldina de Queiroz. Moradores viram "coveiro" para enterrar animais mortos. (Foto: Marcos Ermínio)
Lixo se acumula na rua Leopoldina de Queiroz. Moradores viram "coveiro" para enterrar animais mortos. (Foto: Marcos Ermínio)
Jane procura roupas que se adequem a clima em barraco da favela Cidade de Deus. (Foto: Marcos Ermínio)
Jane procura roupas que se adequem a clima em barraco da favela Cidade de Deus. (Foto: Marcos Ermínio)

Mãe de dois meninos, Elaine Carmo de Souza, 18 anos, tenta desde 2014 vaga no Ceinf (Centro de Educação Infantil) para o mais velho, de 3 anos. Nos últimos meses, a fonte de renda foi o Bolsa Família. Agora, Elaine conseguiu emprego. Morando no bairro há quatro anos, ela reclama da falta de oportunidade. “Antes dos 18 anos, só tinha curso para adultos. Agora que tenho 18, só tem vagas para menor de idade”, diz.

A jovem diz que se pudesse iria embora. Enquanto fica, avalia que o pior do Dom Antônio é o tráfico de drogas escancarado; e o melhor é o trabalho social realizado pelos centros espíritas. “Os meninos ficam fumando em frente das crianças. Fica aquele cheirão de maconha nas ruas. As pessoas que usam drogas roubam qualquer coisa para poder fumar”, diz.

No local em que as pessoas pensam por longos segundos até dizer o que há de bom, uma força se move em meio aos imóveis simples, as placas com marcas de bala, a iluminação pública danificada nas esquinas preferidas dos traficantes: a resistência de quem sonha.

O som do futuro - Localizada em frente ao campo de futebol, a mercearia de Jaqueline Teixeira da Silva, 47 anos, foi encolhendo e hoje é toda do projeto “Asas do Futuro”, criado há 17 anos para dar opção de lazer para quem só podia contar com a rua. A iniciativa de Jaqueline começou com seis meninos. Hoje, são 185 crianças de 5 a 15 anos que ganham oportunidade de aprendizado em dança, música, leitura e esporte.

Em tanto tempo, foram perdas e ganhos. Tem ex-aluno que fez faculdade e volta para agradecer. Tem aluno que desiste por falta de incetivo da própria família. “Investem tanto dinheiro no combate às drogas, mas a prevenção somos nós”, afirma Jaqueline.

E é do reciclável que surge o som vibrante do “tambor lata”. Sob a tutela do professor Fabrício de França, a meninada aprende que basta amarrar borrachas e está criado um instrumento musical de percussão.

Ao conciliar o trabalho na noite, na banda da dupla sertaneja Alex e Ivan, com as aulas, ele também aprendeu. “Aprendi a falar em público e que as crianças são mais especiais do que a gente imagina”, diz.

No ano passado, o projeto teve parceria com o Criança Esperança. Com o fim do convênio, tem dificuldade para arcar com a despesa mensal de R$ 11.250. Atualmente, o “Asas do Futuro” recebe R$ 5.500 da prefeitura. Quem quiser ajudar, pode fazer contribuições e deduzir do Imposto de Renda ou ser voluntário. Há computadores, instrumentos musicais e crianças à espera de professores de informática e violão. O contato pode ser feito pelo (67) 3385 5591.

Quadra em ruínas é a única para cinco  bairros. (Foto: Marcos Ermínio)
Quadra em ruínas é a única para cinco bairros. (Foto: Marcos Ermínio)
Resistência: Jaqueline criou projeto para dar asas à infância.(Foto: Marcos Ermínio)
Resistência: Jaqueline criou projeto para dar asas à infância.(Foto: Marcos Ermínio)
Fabrício mostra que tambor é instrumento musical. (Foto: Marcos Ermínio)
Fabrício mostra que tambor é instrumento musical. (Foto: Marcos Ermínio)
Paulo estuda História e espera que mais moradores tenham chance de chegar à universidade. (Foto: Marcos Ermínio)
Paulo estuda História e espera que mais moradores tenham chance de chegar à universidade. (Foto: Marcos Ermínio)

Por ora, apesar de muitos, os projetos sociais não dão conta de toda a demanda. E uma grande quantidade de crianças, com meninos descamisados, perambulam sozinhas.

“Pensa bem. É ínfima a [quantidade] de pessoas atendidas. Tem uma limitação. E essa limitação faz com que aconteça intriga mental entre os moradores sobre a seleção. Todas as crianças deveriam ter esse tipo de atendimento”, afirma o presidente da associação dos moradores do Dom Antônio, Rubens Honório Alcântara.

Meu lugar – O Dom Antônio Barbosa é endereço do acadêmico Paulo Almeida dos Santos, 21 anos. Hoje, ele cursa História na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e só cogita mudança se for para levar educação a alguma cidade do interior do Estado.

Como muitos dos jovens de lá, primeiro estudou na escola municipal Padre Tomaz Ghiraderlli. Depois, como nem todos, conseguiu vaga no Instituto Mirim. Nesse percurso, viu gente que desistiu. “Droga é problema no Brasil inteiro e aqui no bairro não é diferente. Alguns saem da escola”, conta.

O lixo que se acumula em frente da sua casa não o impede de ver dias melhores, em que mais oportunidades de cursos e estudo cheguem ao bairro.

O valor do lixo - A presença do Lixão, na saída para Sidrolândia, precede a formação do bairro. Hoje recoberta por vegetação, a montanha de detritos começou a ser erigida em 1984. O local foi desativado, mas áreas para que os catadores coletem materiais recicláveis se espalham ao redor.

Ao lado da UTR (Unidade de Triagem de Resíduos), centenas de roupas jogadas em um terreno baldio surpreende quem está de passagem e provoca um questionamento: por que descartar em vez de doar? Na loja a céu aberto, a babá Jane Alves Marcelino, 42 anos, procura peças que se ajustem as condições de lar: um barraco quente na favela Cidade de Deus.

O “garimpo” nas roupas também era feito por Idalina da Rosa, 41 anos, e seu filho de cinco anos, que vieram de Bella Vista, no Paraguai.

O Dom Antônio Barbosa fica em uma região que também engloba Lageado, Parque do Sol, José Teruel Filho e a favela. E a coleta de recicláveis reponde por boa parte da atividade econômica dos 18 mil moradores. Segundo Rubens Honório Alcântara, 30% dos que moram na região trabalham com coleta de material reciclável.

Segundo o líder comunitário, quem faz coleta nas áreas perto do aterro sanitário recebe R$ 100 por dia. Portanto, renda menos raquítica do que a apresentada em pesquisas sobre a região.

Esquecidos - Rubens reclama que o Dom Antônio foi esquecido. A entrevista foi marcada na rua Anselmo Selingardi, em frente a uma praça. O desejo era um local com infraestrutura, mas a realidade traz um local que só tem utilidade diante da persistência de quem a frequenta.

“A situação para quem é liderança é complicada, o poder público só faz o básico. Mas vai passando o tempo e a população vai aumentando. Na realidade, precisava de outra escola, outra unidade de saúde, posto policial. A questão de segurança é importante para a gente, o posto policial que nos atende é o do Aero Rancho. Tem que ampliar o Ceinf, que já esta pequeno”, afirma Rubens.

Empresa de adubo é o cenário do mau cheiro que se espalha em bairro. (Fotos: Marcos Ermínio)
Empresa de adubo é o cenário do mau cheiro que se espalha em bairro. (Fotos: Marcos Ermínio)
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