ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, TERÇA  23    CAMPO GRANDE 22º

Cidades

Pesquisadoras vêem transformação no interior com "Mais Médicos"

Para elas, atendimento dos profissionais melhorou a qualidade da atenção básica e fortaleceu vínculo com pacientes

Izabela Sanchez | 17/11/2018 08:57
Da esquerda para a direita: Mara, Dinaci e Jacinta, que pesquisaram o programa Mais Médicos (Foto: Izabela Sanchez)
Da esquerda para a direita: Mara, Dinaci e Jacinta, que pesquisaram o programa Mais Médicos (Foto: Izabela Sanchez)

O paciente chega ao consultório de uma unidade de saúde do interior. A visita já é a segunda na tentativa de descobrir o que estaria por trás dos sintomas do pacientes. Com sotaque carregado, o profissional de saúde pede que ele fique em pé e examina o paciente. Uma lesão na perna, após olhar mais detalhado, revela que ele sofre de raiva, consequência da mordida por um cão. O médico é um dos topou trabalhar no programa "Mais Médicos", iniciativa que, segundo uma pesquisa, trouxe mudanças significativas para o atendimento de saúde no interior de Mato Grosso do Sul e agora está nas manchetes, depois anúncio de Cuba de retirada dos profissionais do Brasil.

No Estado, dos cerca de 200 profissionais do programa, metade é de Cuba e deixa o país ainda este ano. Uma ausência que vai fazer diferença, no entendimento de três pesquisadoras de um projeto que analisou o programa “Mais Médicos” em seus diversos aspectos. O projeto, parceria entre a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e o instituto Fio Cruz, uniu profissionais de diversas especialidades.

Jacinta de Fátima, uma odontóloga, Dinaci Vieira, administradora, e Mara Lisiane, fisioterapeuta, dedicaram as atividades para entender como o programa, instalado no país em 2013, trouxe mudanças a Mato Grosso do Sul. Agora, relatam, fica a tristeza, após Cuba anunciar a saída do programa, reação a declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL).

A pesquisa faz parte de uma iniciativa nacional, o “Observatório Micro Vetorial de Políticas Públicas de Saúde e Educação em Saúde”, coordenado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“São várias pesquisas no Brasil que mostram efeitos desde a aplicação de princípios do SUS, a satisfação dos usuários, a satisfação dos gestores, o aumento da oferta de serviço médico no país, que tinha um problema antigo. É muito difícil você alocar médicos em lugares vulneráveis, em lugares distantes. Esse problema existira há muito tempo, mas nunca foi enfrentado enquanto política”, comenta Mara.

As pesquisadoras Mara e Dinaci (Foto: Izabela Sanchez)
As pesquisadoras Mara e Dinaci (Foto: Izabela Sanchez)

Vínculo – Um dos municípios completamente transformados pelo programa é Costa Rica, a 305 km de Campo Grande, que tem 6 profissionais médicos de Cuba. Entre os destaques do município, pesquisado por Dinaci, é o fortalecimento do vínculo entre médico e paciente.

“A gente pode perceber a relação de vínculo que ele tinha com a equipe e também com o usuário, uma relação de cuidado muito diferente do que a gente está acostumado a ver. Costa Rica teve um impacto grandioso nos indicadores do cuidado. Os indicadores melhoraram absurdamente no pré-natal, no cuidado com idoso, aquele idoso acamado que precisa ficar em casa, as visitas domiciliares realmente acontecem de acordo com o que é preconizado pela saúde”, explica Dinaci.

São detalhes, esclarece, de um atendimento mais humanitário. “Aquela gestante que tem seu bebê lá no hospital, mas o médico da saúde da família vai visitar para saber como está a saúde, como foi o parto. Então essa relação de promoção e de prevenção, de fato, acontece em Costa Rica. É um dos municípios que vai perder de forma abrupta, o que foi construído desde 2014 até agora”, explica.

Na cidade, segundo a pesquisadora, a regulação de pacientes também melhorou. Casos que antes lotavam hospitais, começaram a ser resolvidos no âmbito da saúde da família. “Costa Rica tinha um pronto atendimento do hospital superlotado, com a vinda do programa isso deixou de acontecer. Diminuiu aquele paciente que procura o hospital por coisas sensíveis à atenção básica. Foi melhor direcionado. A gente presenciou todo esse processo lá, mas tem outros municípios do Estado”.

Dados da SES (Secretaria Estadual de Saúde) indicam 10 profissionais em Corumbá e 9 em Dourados. Quem mais vai sofrer, no entanto, é a saúde indígena, que vai perder 11 profissionais.

Corumbá, segundo Dinaci, tinha uma cobertura de 42% no programa saúde da família. Com a vinda do programa, esse número mais do que duplica e passa a ser de 89% de cobertura de saúde da família. “Isso é um diferencial muito grande. Corumbá agora tem 10 profissionais médicos, Dourados vai perder 9, Deodápolis vai perder 4, então são coisas que vai fazer a diferença pra população” afirma.

Médico do programa em hospital de Naviraí (Foto: Arquivo)
Médico do programa em hospital de Naviraí (Foto: Arquivo)

Atendimento mais detalhado – Para as pesquisadoras, além do vínculo, está nos detalhes do atendimento. “Os médicos do programa permanecem na unidade o tempo todo, as 8h por dia etc. O contato é maior, o acesso é mais facilitado. O tempo de consulta com os cubanos é diferente, o número de consultas aumentou. O acesso à saúde melhorou. Diminuiu internações por causas sensíveis à atenção básica, ou seja, causas que podem ser tratadas na saúde da família, que evita internações”, comenta.

Ela explica que uma das pesquisas, um projeto de mestrado, avaliou a satisfação dos usuários do programa saúde da família depois de serem atendidos por médicos cubanos em Campo Grande.

“O que aparece nessa pesquisa, de maneira muito evidente, é a questão relacional entre paciente e médico. A questão da escuta, do detalhamento do exame, do tempo de consulta e da relação simétrica: não existia hierarquia. Eles falam muito isso: ‘esse médico é diferente’, ‘essa médica é diferente’, são os termos que eles usam, então é uma questão relacional, de habilidade de conversa”, afirma.

Conforme a fisioterapeuta, o acesso à saúde melhorou. A rotatividade dos profissionais, comenta, também mudou e os pacientes passaram a estabelecer uma relação de confiança com os profissionais. “Melhorou a qualidade do atendimento, principalmente porque esses médicos do programa ficam na unidade. Diminuiu a rotatividade, isso apareceu na pesquisa também. ‘Cada dia que a gente vinha aqui era um médico diferente, agora esse aqui já está há dois anos’”, conta Mara.

Para Jacinta o ‘Mais médicos’, de fato, conseguiu colocar os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde) em prática, ao ampliar o atendimento na saúde da família. “Na verdade, a estratégia de saúde da família tem uma perspectiva desmedicalizadora, de o profissional resolver esses assuntos com procedimentos, com atuação, e não apenas encaminhar ou dar um remédio. Ela impacta, diminui o custo da saúde do país, do município, diminui a necessidade de estar medicalizando demais o paciente”, conclui.

Impasse – Nesta quarta-feira (14), o governo de Cuba divulgou nota anunciado a interrupção da cooperação técnica com a Opas que permite o envio de médicos para o Brasil. O comunicado cita "referências diretas, depreciativas e ameaçadoras" feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) à presença dos médicos cubanos no Brasil.

O país caribenho envia profissionais para trabalhar nas regiões mais carentes do país desde 2013, quando a gestão de Dilma Rousseff (PT) criou o Mais Médicos. A nota do governo cubano não informa a data que médicos deixarão o Brasil.

O presidente eleito, que em agosto, durante a campanha, havia falado em “expulsar” os cubanos do Brasil, reagiu. “Condicionamos à continuidade do programa Mais Médicos a aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, publicou no Twitter.

Nos siga no Google Notícias