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Artes

Para cachorros que interpretam a fala humana, palavras importam

Estudo descobriu que cães entedem comunicação verbal tal como nós humanos; por isso, tanto pra eles quanto nós, palavras importam

Marília Adrien de Castro, Dulce Martins e Lúcia Carolina | 21/02/2021 07:25
Ilustração feita por Guto Naveira.
Ilustração feita por Guto Naveira.

Cães entendem não só o que falamos, mas também o tom que damos à nossa fala. Em 2016, o neurocientista Attila Andics, da Eötvös Loránd University de Budapeste, publicou os resultados encontrados pelo estudo, produzido por ele e seus colegas, que escaneou as atividades cerebrais de cachorros enquanto ouviam gravações das vozes de seus treinadores, não somente lhes passando comandos, mas conversando com eles.

Entre os resultados, talvez o mais surpreendente é o fato de que o modo como os cérebros caninos processam a fala é similar ao modo como o cérebro humano também a processa, identificando os termos significativos no hemisfério esquerdo e a entonação, no hemisfério direito.

Tudo isso quer dizer que cachorros são capazes de interpretar a fala humana e que, para eles (assim como para nós), as palavras importam, ainda que eles não as usem verbalmente para se comunicarem.

Segue o conto:

Nenhum dia é mais feliz em minha vida quanto os dias de festa, não só no momento da festa, na verdade, não só no dia da festa, mas desde quando eu percebo a movimentação do pessoal da casa preparando tudo, fazendo planos, pensando no melhor jeito de receber os convidados. Atenta a quem será chamado, ao motivo da comemoração e às músicas que Dulce pretende pôr para receber, eu já vou pensando no meu figurino.

Foi na preparação de uma festa que eu aprendi uma das coisas mais bonitas que já conheci e por ter-me dado conta de algo tão importante na véspera deste tipo de ocasião é que estes momentos tomaram um significado ainda mais especial em meu coração.

Assim aconteceu: naquele dia, antes do almoço, Dulce chegou com as compras, havia pacotes, cheiros e nomes muito diferentes do dia-a-dia. Ela estava animada, agitada e repassou uma lista de coisas que seriam feitas na cozinha, riscando alguns itens e fazendo anotações ao lado de outros. Meu jeito de ajudá-la era ficar pertinho, sobre seu colo, prestando atenção a tudo o que ela fazia e oferecendo meus ouvidos à sua interlocução.

Ajustada a lista, Dulce prendeu-a na geladeira, colada com uma foto imantada minha de quando eu ainda era um bebê... àquela época,minha predileção eram fitas em tons pastelem volta do pescoço, tons que, hoje reconheço, não valorizam meus belos pelos brancos, eles ficam muito mais elegantes e felpudos quando uso laçarotes em cores escuras, vivas, que contrastam com o branco. Entre tudo o que já aprendi, sem dúvida, hoje eu me visto muito melhor e, se pudesse, escolheria o que vestir para todo mundo que conheço, é uma pena os humanos não terem a capacidade para decodificarem a minha fala, se pudessem, certamente confiariam a mim seu guarda roupa e eu os faria muito mais requintados. Se eu tivesse uma profissão humana, meu talento me levaria a ser personal stylist.

Dulce e a secretária tiravam as compras das sacolas, coisas que eu conhecia isoladamente, mas nunca sabia em que poderiam dar quando misturadas. Tiraram ovos, um saco de castanhas parecidas com os itens dos cafés da manhã de Dulce, cujo cheiro era fresco e delicioso, tiraram também pacotes de açúcar e eu duvidei muito do que poderia ser feito com apenas três simples ingredientes, mas se tem alguém que nunca deixou de surpreender-me, mesmo nas situações mais simples, este alguém é Dulce. Ela disse à secretária:

— Precisaremos de 35 gemas...

— 35, Dona Dulce?! Com 35 gemas, a senhora faz omeletes para 17 dias e meio se for usar dois ovos por omelete, será um desperdício gastar o café da manhã de 17 dias e meio nos doces de uma noite só!

— Eu sei, ok... Mas é uma ocasião especial, seria um desperdício se fizéssemos esta quantidade de doces uma vez por semana, agora, de vez em quando, poxa, todo mundo precisa de uma festinha para alegrar os dias e de um docinho para enternecer a boca, ou a gente começa a falar das coisas com pouca candura, com pouca doçura, minha amiga, até ficar amarga. Vamos lá, os doces têm de ficar prontos hoje mesmo, mãos na massa!

— A senhora sempre gostou de doces, Dona Dulce?

— Não sei se sempre ou desde que eu descobri, quando ainda era criança, que trago este sabor agradável no nome.

Então era isso! Tudo passou a fazer um sentido claro, certo, tudo se encaixava na minha realidade: minha querida humana, que para mim e todos os seus amigos só tinha ternura e acolhimento, tem o nome das coisas que são doces!A palavra que a designa, que a aponta entre todos os seres humanos, é aquela que aponta também tudo o que é agradável de sentir, de presença meiga e que deixa uma lembrança alegre.

Dulce, o doce de meus dias, continuou:

— Aqui está um quilo de nozes e...

— UM QUILO?! Deus do céu, Dona Dulce, um quilo são 1.000 gramas, certo?

— Ãããh... Certo, mas...

— Não, Dona Dulce, sem“mas”, a senhora não pode estar prestando atenção, veja bem, uma noz tem cerca de 100 gramas, os médicos recomendam consumirmos uma porção diária de oleaginosas, entre elas, quatro unidades de nozes, portanto, 400 gramas. Dona Dulce, um quilo de noz dá para dois dias e meio da porção correta diária de nozes!

— Lá vem você com seus “... e meio”...

— Não sou eu, não, é a matemática! Tanto no caso dos ovos como no caso das nozes, dá mais meia porção.

Era tão engraçado ouvir os protestos de nossa secretária sobre o que, em sua visão, eram excessos de Dulce!

Até eu, que sou um cão, sei que o nome de uma pessoa não é uma palavra qualquer, emprestada a alguém para simplesmente produzir um som que, proferido, deve fazer este alguém ficar atento, porque se trata de um chamado. Não, um nome não é um apito de humanos, dar um nome a uma criança inicia sua própria existência, porque atribui não só uma diferenciação de todos aqueles que têm outros nomes, mas atribui qualidades. No caso de nossa Dulce, na qualidade de tudo o que um doce produz, ela gerava afetos e para gerarem-se afetos há que ser generoso e não economizar-se na brandura.

Ouvi o sorriso acalentador de Dulce, que ainda pretendia fazer os tais doces na véspera da festa, isto se a matemática da economia doméstica de nossa secretária permitisse:

— Por fim, precisaremos de 500 gramas de açúcar... Algo a acrescentar?

— Olha, numa colher de chá, temos quatro gramas de açúcar, então, com 500 gramas de açúcar,podemos adoçar125 xícaras de chá, nas quais a senhora gosta de tomar seu café.

— 125 xícaras e meia? Cadê o “meia”?

— Engraçadinha, Dona Dulce...

As duas caem na gargalhada, como boas amigas que são, como manda o brilho da ocasião (uma festa!), como proporcionam as criaturas que são doces.

— Agora – Dulce prosseguiu na receita – temos de misturar este açúcar à água, numa panela, em fogo brando, até ele ficar em ponto de fio. Você sabe que o ponto de fio é aquele em que o açúcar fica tipo uma goma fina, capaz de formar um fiozinho consistente se o puxarmos com as pontas dos dedos.

— Deve ser fino esse doce que a senhora vai fazer, Dona Dulce, quando é para o açúcar ficar assim, é porque o doce é fino!

— Estamos fazendo camafeus!

— Nossa! Um doce que parece uma joia, que divide o nome com uma joia!

— Sim, camafeu vem do latim, cammaeus, referia-se a uma pedra esculpida, com alguma figura em relevo. Esse era o nome da pedra preciosa na qual se esculpiam figuras femininas, com um ar nobre, ou figuras de deusas da Antiguidade, para serem usadas como pingentes ou broches, tão sofisticados, que emprestaram o nome para qualquer joia na qual, hoje em dia, se faz aquele mesmo tipo de escultura em relevo.

— Que sorte Hanny e eu temos na companhia da senhora, Dona Dulce, que além de ser doce, é uma professora generosa, dividindo conhecimentos ou ovos, nozes, açúcar...

Isso era verdade, nosso lar era feliz, porque as pessoas que nele viviam se sentiam assim. Talvez as festas fossem os momentos que confirmavam nossa felicidade, talvez por isto fossem tão importantes para mim e para todo mundo de nossa casa e que para nossa casa era convidado.

— Assim que o açúcar alcançar o ponto de fio, nós misturamos as nozes, que antes devem ser trituradas, além das famosas 35 gemas. Vamos mexendo, até desgrudar da panela.

— Igual brigadeiro?

— Sim, em fogo baixo. Como com os brigadeiros, quando começar a desgrudar da panela, nós tiramos do fogo e deixamos esfriar.

— Para dar o ponto de enrolar, certo?

— Sim. Depois, cobriremos com fondant branco, da cor dos pelos de Hanny. O fondant é feito de açúcar (200g), água (75ml), gelatina (8g) e creme de leite (140g), é só misturar numa panela, a fogo baixo, depois bater no mixer. É por causa do fondant que precisamos fazer os camafeus na véspera, para eles estarem no ponto certo amanhã.

— Quando eu terminar, faço os cálculos de quanto renderia o tal fondant em alimentos do dia-a-dia...

Dulce deixa a cozinha trocando gargalhadas com nossa secretária, a quem eu chamaria de Prudência, Dona Prudência.

Subo no colo de Dulce, estou feliz e ela sente meu estado de ânimo nas batidas de meu coração, no calor de minha barriguinha sobre seu antebraço. Estou feliz porque teremos uma festa, porque receberemos amigos, porque usarei o laçarote em cor forte, talvez vermelha, talvez azul, talvez enfeitado com um pingente de camafeu, porque haverá música, dança, coisas que têm o mesmo nome da brandura e dos deleites amáveis de minha querida humana, Dulce.

*Marília Adrien de Castro, Dulce Martins e Lúcia Carolina escreveram juntas a obra literária "Hanny, Amor Eterno". São contos de uma cachorrinha que vive entre humanos e sonha com os humanos. A proposta, segundo elas, é que os homens se conscientizem mais sobre as questões animais e principalmente como os cães ocupam um espaço muito especial de amor e muitas vezes como um membro da família. As histórias de Hanny são embasadas na vida real ela existiu e até hoje vive no coração da Dulce e dos amigos.

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