ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
MAIO, SÁBADO  04    CAMPO GRANDE 32º

Artes

Transexual abre o corpo em museu para ser alfinetada pelo público

Performance faz parte do “IPêrformático” que percorre Campo Grande até o dia 15 de abril

Thailla Torres | 11/04/2019 07:58
Cícero Rodrigues, à esquerda, foi um dos primeiros a colocar a palavra "força" em Alice. (Foto: Kísie Ainoã)
Cícero Rodrigues, à esquerda, foi um dos primeiros a colocar a palavra "força" em Alice. (Foto: Kísie Ainoã)

Ficar nua para Campo Grande, cidade enorme ainda com cara de pequena, onde as normas parecem pesadas e muito presentes, não é uma tarefa fácil. Mas desde o primeiro dia do festival “IPêrformático” artistas tem rompido barreiras para, através do corpo, mostrar à cidade o que é arte contemporânea.

Na última terça-feira (9) a performance principal no Marco (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul) foi da artista e transexual Alice Yura, também idealizadora do festival de performance.

Durante 40 minutos, em uma das salas principais do museu, com entrada apenas para maiores de 18 anos, ela abriu seu corpo para que o público expressasse o que quisesse sobre feminino, usando papeis e agulhas que poderiam ser colocados em sua pele. E, para alguns, foi difícil traduzir em palavras a experiência limite da performance.

Durante 40 minutos, Alice recebeu alfinetes pelo corpo e sentiu na pele os limites do ser humano. (Foto: Kísie Ainoã)
Durante 40 minutos, Alice recebeu alfinetes pelo corpo e sentiu na pele os limites do ser humano. (Foto: Kísie Ainoã)

Alice se manteve imóvel, até o piscar de olhos foi minucioso. Enquanto recebia agulhas, seu corpo não dava respostas sobre o que sentia, mas o público... Esse foi o ponto alto da performance.

Usando agulha de acupuntura, luva e um papel com a palavra que crie significado ao feminino bastava espetar Alice, em qualquer lugar do corpo, exceto os olhos. Mas, ao contrário do que parecia fácil, ainda na fila a espera do museu, agulhar Alice foi um reencontro com o medo, a agressividade, vulnerabilidade, dor e o grito silencioso de socorro tão presente no mundo feminino.

Em diálogo de energia e agulhas, plateia e artista construíram juntos a obra, testando dos dois lados os próprios limites. “Senti muito medo, eu não sabia com quem eu estava lidando e quem estava lidando com meu corpo. Mas a performance mostrou que esse é um medo comum que a gente sente quando está na rua, por ser mulher, por ser feminino, por ter esse corpo feminino”.

Nem todo mundo teve coragem de espetar Alice. Alguns papeis foram colocados no chão, nos cabelos ou ficaram apoiadas nos mamilos. Na interação com as agulhas, elas ficaram posicionadas nos braços, nas costas, mãos, pés, cabeça e testa. Apareceram entre as palavras amor, força, coragem, felino, trans, xota, resistência, acolhimento e morte, por exemplo.

" Meu corpo também foi suporte para denúncia e ampliação de um coletivo", diz Alice. (Foto: Kísie Ainoã)
" Meu corpo também foi suporte para denúncia e ampliação de um coletivo", diz Alice. (Foto: Kísie Ainoã)

“As pessoas utilizaram meu corpo para demonstrar seus sentimentos. Ele também foi suporte para denúncia e ampliação de um coletivo. Justamente essa ação do público com a obra é constrói o trabalho completo”.

No público, a performance trouxe um misto de amor e dor. Cícero Rodrigues, de 33 anos, tatuador foi um dos primeiros a interagir com a obra. “Eu achei muito invasivo. No primeiro momento hesitei, tremi e me emocionei. Por mais que eu soubesse que tudo era um trabalho pensado, foi muito difícil. Ter que ter essa agressividade para expressar o feminino foi muito difícil”, conta.

Sussurrando licença no ouvido de Alice, Cícero achou um ponto no cotovelo da artista, próximo a tatuagem de liberdade. “Achei que ali seria o melhor lugar para colocar sem que ela sentisse dor, traduzindo a força que eu vejo que o feminino transmite. E fiz questão de participar porque hoje estamos rodeados de femininos de poder, vivemos numa época maravilhosa de desconstrução e acho que a Alice traz muito isso”.

O estudante Emiliano Mateus também interagiu com a obra. (Foto: Kísie Ainoã)
O estudante Emiliano Mateus também interagiu com a obra. (Foto: Kísie Ainoã)

O diretor teatral Nill Amaral diz que foi surpreendido. “Quando eu sai da sala ainda comentei que havia imaginado outra coisa, que ela iria se movimentar e pegar os papeis, depois percebi que não era teatro, sim um grito silencioso dentro de uma exposição, recebendo impulsos por meio das palavras. E isso faz com que a gente possa refletir sobre essa construção, essa vontade de dizer alguma coisa através da própria imagem”.

Emiliano Matheus, de 19 anos, pensou até os últimos minutos sobre a interação. “É um corpo que sofre tanto diariamente que eu não queria machucá-la, ao mesmo tempo eu queria fixar algo que o feminino me transmite muito no dia a dia que é poder”.

Olhar Alice naquele estado fez o ator Febraro de Oliveira, de 20 anos, não segurar as lágrimas. “Eu achei tão agressivo que me fez sentir violento. Nesse momento percebi que a gente tem uma responsabilidade muito grande em tudo o que acontece e fiquei pensando até que ponto eu sou culpado por essa violência ao feminino. Então fiquei em choque, e decidi colocar o papel no chão. Queria mesmo era abraça-la e pedir desculpa pelo o que mundo faz com ela todos os dias”, finaliza

São 11 dias de festival e as apresentações são gratuitas. A programação completa pode ser conferida no Facebook.

Curta o Lado B no Facebook e Instagram.

O que feminino significa para você? (Foto: Kísie Ainoã)
O que feminino significa para você? (Foto: Kísie Ainoã)
Nos siga no Google Notícias