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Comportamento

Ao completar 18, menina se despede de abrigo voltando para agradecer juíza

Paula Maciulevicius | 25/08/2016 08:05
Com o ursinho, primeiro brinquedo que pegou no abrigo, aos 14 anos. (Foto: Alcides Neto)
Com o ursinho, primeiro brinquedo que pegou no abrigo, aos 14 anos. (Foto: Alcides Neto)

Ilkelly completou 18 anos e de presente, ganhou uma festa de aniversário surpresa. A chegada da maioridade trouxe a ela a despedida do lugar que aprendeu a chamar de lar. Os últimos anos de vida foram ali, dentro de uma das instituições de acolhimento da cidade, a Segunda Casa. De família desestruturada, pai alcoólatra e mãe assassinada quando ela só tinha 6 anos de idade, Kelly sorri para a vida, agradece a quem lhe estendeu a mão em palavras de amor. 

De Dois Irmãos do Buriti, cidade distante 83 quilômetros da Capital, a trajetória de Ilkelly Gomes de Souza incluiu três fugas, até perceber que os diretores do abrigo seriam a melhor família. 

"Minha mãe morreu cedo. E o fato do meu pai ser alcoólatra, ele não ligava para a gente. Fui morar com meus tios e ficava de casa em casa e em lugares que achava que poderiam cuidar de mim, mas eu era maltratada, as pessoas aproveitavam da minha boa vontade e eu aguentava, porque precisava de um lugar, um teto para morar", descreve. 

Aniversário surpresa que ganhou, ao fazer 18 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Aniversário surpresa que ganhou, ao fazer 18 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nas idas de casa em casa, na cidade natal, ouvia do pai que um dia iria parar no abrigo, que "ela ia ver", como se a instituição fosse castigo. Kelly é a mais nova das meninas, de um total de 11 filhos.

Quando chegou à "casa de passagem", denominada assim porque abriga temporariamente as crianças e adolescentes retirados das famílias, fugiu no mesmo dia. A pegaram, ela fugiu de novo e foi encontrada. Dessa vez, foram dias passando fome e frio nas ruas.

"Quando eu voltei, falei que queria mudar, queria uma nova história para a minha vida e a doutora Katy falou que ia me mandar para o abrigo. Fiquei esperando como ia ser lá e ela (a juíza) disse que eles iam me amar, cuidar de mim", recorda a ainda menina, Kelly - à época com 14 anos. A juíza em questão é a titular da Vara da Infância e Juventude, Katy Braun.

Os anos dividindo casa, quarto e comida entre crianças com outras tantas histórias iguais as de Kelly, lhe renderam um novo significado para família. "Eles me amaram, me ensinaram, fizeram papel de pai e mãe mesmo. Tudo o que uma família faz por uma criança, uma adolescente que precisa de estrutura, de lugar fixo. Durante esses quatro anos, foram momentos maravilhosos", descreve.

As maravilhas incluem até as correções, que Kelly admite o quão foram necessárias para que ela encontrasse um caminho. "Tive os sonhos restaurados. Sonhos, sabe? Hoje eu tenho sonho, sou amada, pessoas que me amam de verdade. Como eu vim de uma família desestruturada, eu pensava que nunca ia ter uma, porque ia ser igual, ia acontecer novamente. Mas aqui foi diferente", diz. O exemplo que lhe faltou em casa, ela achou no abrigo. Usava como exemplo os funcionários, se espelhava neles.

"Hoje tenho sonhos de me casar, de construir minha família, de ser a mãe que eu não tive, de ver meu marido ser o pai que eu não tive". Kelly já tem um "candidato", um namorado tão lindo quanto ela, que carrega sensibilidade no olhar.

Desde que chegou ao abrigo, a jovem sabia que quando completasse 18 anos, se mudaria. Só não imaginaria que teria um suporte e uma segurança para quando chegasse a hora. "Eu ficava pensando, mas eu vou embora sozinha? Sem ninguém. Agora não, eu sei que a gente criou um vínculo. Uma família mesmo, que sempre vai estar me apoiando. Hoje, o pensamento é diferente". As palavras saem de frente para a "tia", Zuleica Marques, coordenadora da instituição de acolhimento Segunda Casa, que foi quem ensinou que abrigo não é lugar e sim pessoas.

Kelly junto dos coordenadores do abrigo, Zuleica, Aluízio e Silvano. (Foto: Alcides Neto)
Kelly junto dos coordenadores do abrigo, Zuleica, Aluízio e Silvano. (Foto: Alcides Neto)

Zuleica tem amor no falar, nos gestos e no carinho para com Kelly. A tem como filha e a reciprocidade confirma o afeto. "A gente começa a preparar o desacolhimento dos 15 anos em diante, para aquelas moças que sabem que não vão poder retornar para a casa. Nós não vamos abrir o portão, pronto, fez 18 e desacolher. Não, elas não estão sozinhas", afirma a coordenadora.

Neste meio tempo, a jovem fez curso de cabeleireira, continua os estudos e também trabalha. Uma nova moradia está sendo providenciada, deve ser dividida junto de outra adolescente do abrigo, que completa 18 em janeiro.

"Eu vou continuar em Campo Grande, viver a vida aqui. Minha família? Quando eu tiver oportunidade, eu verei. Mas não vou guardar ressentimento. Liberei perdão na vida deles, quero que estejam bem. O abrigo foi um lugar onde as pessoas me amaram de verdade, onde eu, que nunca tive amor e afeto de pai e mãe, tive. Eu vejo como uma casa, uma família", resume.

Na última sexta-feira, Ilkelly foi até a juíza, a mesma que a direcionou para o abrigo, agradecer. Parte da gratidão incluiu até o convite para que ela aceite ser madrinha do casamento, sonho que um dia a jovem vai realizar. Para a "tia" do abrigo, Zuleica e os demais coordenadores, Aluízio e Silvano, a demonstração vem na declaração. "Vou honrar a vida deles. Reconheço, nos mínimos detalhes, tudo o que eles fizeram para mim".

Ilkelly quer ser advogada. Quem sabe será juíza, para dar a outra menina o mesmo olhar lançado à ela.

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(matéria editada para correção às 8h06)

Na parede, um resumo do que ela chama de "melhores anos da vida", os últimos 4. (Foto: Alcides Neto)
Na parede, um resumo do que ela chama de "melhores anos da vida", os últimos 4. (Foto: Alcides Neto)
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