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Comportamento

Assim como você, Ediane só tenta equilibrar home office e louça suja

"Morada para meus sintomas" é a crônica que descreve frustração, medo e a vontade de não fazer nada na quarentena

Paula Maciulevicius Brasil | 06/04/2020 10:15
Ediane é psicóloga e escritora. (Foto: Arquivo Pessoal)
Ediane é psicóloga e escritora. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ediane Palhano tem 42 anos, é psicóloga clínica, e há quase 20 anos trabalha com adolescentes e adultos. Desde 2019, colocou em prática um sonho antigo, o de escrever. E é neste texto "Morada para meus sintomas" que ela descreve como se sente em meio à quarentena que impôs uma suspensão, sem prazo de volta, de tantos sonhos e planos.

A leitura faz a gente se identificar muito. E parece mesmo que Ediane escreveu para mim.

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Morada para meus sintomas

Me sinto mal e não estou falando dos sintomas do Covid-19. Embora eu também esteja mal com a devastação que o vírus tem causado na humanidade e todas as imposições que uma quarentena nos impõe. Me sinto mal por me sentir mal com outras situações que não envolvam o vírus que corre lá fora e tem matado tanta gente.

Eu tinha tantas coisas para serem resolvidas, tantos planos, prazos, boletos para serem quitados, reformas para realizar, dívidas para serem contraídas, procrastinações antigas para resolver, viagens para realizar...  Mas, de repente, tudo foi paralisado, de uma hora para outra. Demasiadamente simples e extremamente complicado ao mesmo tempo - Fica em casa!

Eu tenho pensando que deve ser muito parecido com a morte, não com a coisa em si, mas quando chegarmos lá – seja o lá onde for – céu, inferno, juízo final, comunidade de luz, umbral, até mesmo naquele lugar inebriante dos folhetos das Testemunhas de Jeová que, calorosamente, recebemos nas nossas portas aos domingos de manhã.  Deve ser muito parecido com tudo que tenho sentido agora nesse momento. Um estado de melancolia e pesar. Uma espécie de suspiro sentimental. “

Ahhhhh, logo agora? Eu tinha tanta coisa para terminar.  Eu tinha tantos planos legais. Poxa...Não deu tempo de fazer quase nada!  Quando é que eu posso voltar?”

O Covid-19 chegou e trouxe consigo a morte e a sensação de quase morte – estou viva e não tenho sintomas da doença, mas vários sentimentos dentro de mim parecem ter morrido ou respiram com ajuda de aparelhos.  

Eu não participei de nenhuma live no Instagram, não zerei minhas séries, não descobri as novidades da Netflix, não terminei meu livro, não fiz nenhum curso bacana on-line gratuito, não iniciei nenhum trabalho manual, não assisti nenhum show ao vivo dos meus artistas favoritos, não faxinei armário, não experimentei receita nova e não botei a papelada em dia. Não tenho conseguido comer saudável, fazer exercícios físicos, estabelecer uma rotina de estudos para as crianças, tampouco bolar atividades interativas, pedagógicas e poéticas com toda família na sala. 

Eu não tenho feito nada que as blogueiras, os coachings, alguns psicólogos - diplomados ou não - as milhares de correntes de WhatsApp, as minhas tias e os supostos manuais de sobrevivência emocional estão sugerindo e muito menos aproveitando o momento. Sigo apenas existindo e também me sinto mal por isso. Tenho tentado “apenas” a proeza de equilibrar o home office, a louça suja, que insistentemente brota na pia o dia inteirinho, e manter os níveis mínimos de limpeza e higiene para não ser devorada pelos ácaros e bactérias, além de não cometer nenhum assassinato aos moradores da casa. (será que preciso explicar que essa parte é piada?)

Conciliar home office com a louça suja na pia... Uma dos exemplos que a crônica nos traz.
Conciliar home office com a louça suja na pia... Uma dos exemplos que a crônica nos traz.

Os dias passam lentamente e meus sentimentos contrariamente oscilam na velocidade da luz: apatia, euforia, esperança, desilusão, raiva, alegria, tristeza e todos os demais sentimentos que sou capaz de aperceber em minha alma, mesmo que alguns eu nem ao menos consiga nomeá-los. Na montanha russa de minhas emoções sigo me questionando: será que já estou infectada, mas sem aparentar os sintomas? Será que contaminei outras pessoas? Quando é que isso tudo vai acabar? Como as pessoas estão conseguindo?  E os mais pobres?

Estaria eu contrariando a grande determinação desse século? SEJA FODA! E não pare de ser FODA! Nem na quarentena? Muito menos nesse momento, porque só os fracos desistem e os fortes persistem. Porque nos momentos de crise é que enxergamos grandes oportunidades e blá, blá, blá. Eu já decorei e nem por isso posso dar os créditos dessas frases acima porque elas se espalharam como um vírus, estão em toda parte e eu nem sei quem começou isso tudo. Talvez melhor nem saber...

Mas gente, só um minutinho, que eu não estou conseguindo e eu juro que não é má vontade – juro pela morte da minha mãezinha, que eu quero que caia morta agora aqui na minha frente se eu estiver mentindo. Não estou conseguindo ser "FODA", já não conseguia antes, agora então, está mais difícil ainda, mesmo tendo todas as condições ditas ideais para isso. 

Embora eu não seja rica , tenho noção de que sou privilegiada, pois tenho uma casa confortável, um trabalho que gosto, um salário digno, capaz de suprir minhas necessidades básicas e com direito a algumas extravagâncias de vez em quando ( mesmo que para isso use o cheque especial),  uma funcionária que me ajuda na lida do lar, filhos saudáveis que estudam numa boa escola particular e um bom marido para amar e me irritar. Ele obviamente não coloca a roupa suja no cesto e insistentemente deixa a toalha molhada em cima da cama. 

Como legítima brasileira, sofrerei as consequências da economia e temo por isso. Também sei que não vou passar pelos graves problemas que milhões de pessoas no mundo estão passando ou irão passar como a fome, por exemplo, e isso me deixa muito mal, porque paralelo a isso tudo que é tão grave no cenário mundial, minhas inquietações pessoais permanecem latentes mas agora parece não haver mais autorização para existência delas, pois tudo parece inadequado e ínfimo perto das atrocidades que uma pandemia traz para a humanidade. 

 Diante da morte de milhões de pessoas e da iminência da minha própria morte na porta de casa, seja pelo vírus ou pela enxurrada de notícias atordoantes que recebo todos os dias, as minhas angústias pessoais parecem afrontosas, indecorosas e mesquinhas -  As pessoas estão morrendo -  Eu sei e acredito, inclusive que não é uma “gripezinha”, mas a verdade é que meu mundo interior também luta contra várias “epidemias pessoais” há muito tempo. Algumas delas são velhas conhecidas, outras sofreram mutações ao longo do tempo e para grande maioria eu também não achei a cura e sigo “apenas” tentando achar meios para ao menos sobreviver a elas. 

Infelizmente, para isso não posso contar com a ajuda dos médicos, pesquisadores e cientistas que nesse momento estão trabalhando arduamente em prol da humanidade. Eu faria muito gosto se alguém fizesse as descobertas por mim e para mim, diferente de uma parcela (surreal) de pessoas que negam a ciência e insistem na ideia démodé de mais uma teoria - dessa vez “made in china” - da conspiração.

Felizmente, ainda posso contar com a ajuda da minha Psicóloga que permanece ao meu lado, embora nesse momento de forma virtual. Sua estima e respeito ainda são capazes de dar morada para meus sintomas, meus sentimentos e minhas palavras, me permitindo falar da pandemia e de outros assuntos sem parecer desumana ou insensível.

Assim, posso admitir que me sinto mal por me sentir mal e que não sou FODA, não estou foda e que talvez eu nem queira ser foda. Tudo já está sendo muito foda – tanto para aqueles que podem ficar em casa e mais foda ainda para aqueles que não podem se dar ao luxo do isolamento social. Se permanecermos vivos e ajudarmos as pessoas a não morrerem hoje, seja pelo vírus e/ou pela fome, já é demasiadamente FODA.

Ediane Palhano

Psicóloga



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