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Comportamento

Casada aos 14 anos, Najah “vendeu” a vida para estudar e hoje ajuda refugiados

Natural do Líbano, Najah conta como foi casar aos 14 anos, viver longe da escola e só realizar um sonho décadas depois.

Thailla Torres | 10/07/2019 07:57
Najah concluiu Direito após anos longe da escola e hoje quer mudar a vida de pessoas. (Foto: Arquivo Pessoal)
Najah concluiu Direito após anos longe da escola e hoje quer mudar a vida de pessoas. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nascida no Sul do Líbano, Najah Barakat veio ao mundo na geração da guerra, em 1974. À época, com o país devastado pelo conflito, a vela e o lampião eram a principal companhia da família que se embriagava com o cheiro do querosene. Apenas uma vez por semana, durante aproximadamente duas horas, eles tinham luz elétrica. Sair de casa era um delírio e o desejo de ser uma mulher livre era como iniciar uma nova guerra.

Foi dentro desse cenário que Najah cresceu e entendeu que o mundo era maior do que sua origem lhe permitia. No país onde tudo era proibido, ela viajava sozinha, escondida, apenas nos livros, escritos por filósofos que viveram há centenas de anos. “Quando eu lia um livro, ele me endossava, me conduzia e me fazia embarcar na história. Eu sempre amava ler e achava essa viagem fantástica. Só que um determinado momento, eu decidi cruzar a fronteira dos livros”.

Aos 14 anos, Najah estudava, mas queria ir além. Naquela época, meninas começavam a casar a partir dos 16 anos e só arrumavam pretendentes até os 25. “Depois disso eram consideradas velhas demais para a união”, explica. O casamento poderia significar o fim de um sonho para quem desejava estudo, por isso, ela imaginou fazer tudo diferente. “Eu planejei vender a minha vida para alguém que morasse fora em troca de estudo”, lembra.

À época, um homem libanês viajou do Brasil até o Líbano em busca de alguém para casar. “O Brasil já me encantava porque era vendido naquela época de maneira muito romantizada e dramática, em que era preciso cruzar os sete mares. Eu lembro que ficava girando o globo azul e colocava o dedo propositalmente no país”, lembra.

Nesta semana, após anos de silêncio, ela topou contar sua história. (Foto: Thailla Torres)
Nesta semana, após anos de silêncio, ela topou contar sua história. (Foto: Thailla Torres)

Quando soube do homem recém-chegado do Brasil, Najah, de imediato, topou casar em troca de condições. “Eu fiz isso porque queria continuar meus estudos. Tinha em mente fazer Relações Internacionais, amava idiomas, amava pessoas. Então eu pedi uma casa e uma sala de aula, em troca daria minha juventude para ele. Ele disse que sim”.

Mas sua estratégia não teve um final feliz. Três meses depois da “negociação”, Najah casou e desembarcou no Brasil. Adolescente, aqui ele soube que foi enganada. “Soube aqui que não poderia fazer o que eu queria. A vida que foi me desenhada não era verdade. Como diz o português, comprei gato por lebre. Mas eu não tinha como voltou atrás”.

Ela narra o período difícil com lágrima nos olhos. Ainda menina, não tinha preparo físico, mental e emocional para ser uma ‘esposa’. “Eu sai perdendo durante muito tempo em todos os sentidos. Porque sem os estudos você emburrece, você briga com o mundo. O ser humano é feito de emoções e sentimentos que nos movem. E eu fiquei destituída de carinho, amor e os melhores sentimentos”, descreve.

Pouco tempo depois, Najah engravidou e a gestação exigiu dela uma força que ainda não havia encontrado. “Eu era só uma menina. Hoje, quando eu olho para trás eu penso que Deus não quis que eu fosse uma pessoa depressiva e jogada no mundo. Não sei como eu tive forças, mas acabei encarando tudo”.

Najah fala dos filhos com amor e dor. “Eles são tudo na minha vida, mas me dói saber que eu poderia ter sido uma mãe melhor e não fui, porque eu não tinha preparo. Ainda menina, nós não sabemos o que é ser mãe”.

Atualmente, ela é mestranda de Direitos Humanos na UFMS. (Foto: Arquivo Pessoal)
Atualmente, ela é mestranda de Direitos Humanos na UFMS. (Foto: Arquivo Pessoal)

Reviravolta – Dos 14 anos aos 38 anos, Najah viveu inteiramente para a família, desacorçoada com o sonho de mergulhar nos estudos. “Eu chegava na esquina e ficava com medo. Mergulhava em coisas que faziam eu me perder. Não conseguia me reconhecer mais”.

A esperança só chegou com a internet, conta. “Conheci uma amiga muito querida que me encorajou a estudar. Eu não tinha condições de pagar, mas ela tinha poder aquisitivo e decidiu me ajudar por um tempo. Eu, envergonhada de entrar numa universidade, demorei a me matricular até o dia que tomei coragem”.

Najah foi bem recebida, mais do que esperava e formou em Direito numa universidade particular de Campo Grande. De lá, foi aceita no Mestrado de Direitos Humanos, onde hoje, aos 44 anos, ela estuda e encoraja refugiados a seguir um novo caminho.

“O ser humano pode ser destituído de tudo, menos de estudo. Meus pais deveriam ter me segurado e falado que eu não ia casar. Não sei se eu tivesse ficado lá teria chance de estudo, até porque naquela época as mulheres não trabalhavam, hoje a realidade no Líbano é bem diferente. Mas hoje eu faço questão de encorajar as meninas a encarar os livros”.

A monografia de Najah teve como tema “Refugiados sírios: Uma catástrofe humana entre a esperança e a realidade”. Hoje, com o mestrado, ela concilia o tempo com pesquisas e conhecimento aos refugiados que carecem de acolhimento.

Na visão da mestranda, embora o País disponha de uma legislação para refugiados, é necessário compreender a origem e a necessidade de acolhimento. “Eles [refugiados] se mostram cada vez mais presentes no Brasil e tem ocupado os noticiários em busca de uma vida melhor. É meu dever contribuir com essas pessoas”.

Apesar das memórias que carregam uma história de dor, hoje ela se diz uma mulher feliz. “Realizada graças aos livros e longe do silêncio. Porque o silêncio é o grito mais dolorido de uma mulher. Antes, eu não falava da minha história, tinha vergonha de dizer essas palavras, hoje não devo nada a ninguém. E o que eu puder fazer para ajudar o próximo e dar a ele o mínimo de dignidade, eu vou fazer”, conclui.

Sobre o interesse do Lado B na entrevista, Najah questionou, diversas vezes, se sua história não era insignificante por aí, sem se dar conta de que o importante para nós é inspirar pessoas e, sua coragem, inevitavelmente inspira.

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