Ciclo da erva-mate custou suor e a liberdade indígena em MS
Exposição da Jornada do Patrimônio Cultural aborda a exploração de trabalho nos tempos dos ervais

Antes de virar tema de exposição, a história dos ervais foi escrita com suor, exploração e resistência. No ciclo da erva-mate, que marcou o Sul de Mato Grosso no final do século 19 e primeiras décadas do século 20, o verde que saía dos campos para a Argentina carregava o peso de jornadas exaustivas e de uma escravidão travestida de contrato de trabalho.
RESUMO
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Essa realidade é o fio condutor da mostra “Erva-Mate – Nos tempos dos Ervais por Hélio Serejo”, que abriu nesta segunda-feira (11), a 1ª Jornada Estadual do Patrimônio Cultural de Mato Grosso do Sul.
Reunindo fotos históricas, 32 livros, sendo 28 do próprio Serejo e quatro sobre o ciclo ervateiro, artefatos e registros do autor, a exposição integra o evento que, durante agosto, vai explorar “Caminhos de Memória: Territórios, Saberes e Resistências”.
Pesquisadora e historiadora, Carla Villamaina Centeno trouxe à discussão a realidade dos trabalhadores do período que ajuda a entender o perfil econômico e social do Estado.
Ela estudou o período de 1880 até a década de 1930 e encontrou, nos documentos e na obra de Hélio Serejo, a face humana e dolorosa do trabalho nos ervais.
“Esses trabalhadores, na maioria indígenas e descendentes de indígenas vindos também do Paraguai, eram explorados de forma brutal. A gente chama de escravidão por dívidas, porque eles chegavam endividados e não podiam deixar o trabalho. Alguns morriam, outros eram capturados. Era praticamente trabalho escravo”, descreve Carla.
Segundo ela, os indígenas levavam para os ervais um conhecimento tradicional sobre a planta, mas esse saber era colocado a serviço de um sistema capitalista.

“Não era mais para consumo próprio, era produção para exportação. Eles dominavam todo o processo, desde cortar com a tesoura até a queima e secagem da erva. Tentaram substituí-los, mas ninguém conseguia. O trabalho era pesado e exigia habilidade”, avalia.
Nas fotografias expostas, é possível ver homens carregando sacos de até 250 quilos nas costas, caminhando até o ponto de beneficiamento, chamado de barbaquá. Ali, o verde era secado, socado, ensacado e posto em carros de boi até chegar aos portos, de onde seguia pelo Rio Paraguai para Argentina e Uruguai.
O coordenador do Arquivo Público Estadual, Douglas Alves da Silva, lembra que a Companhia Mate Laranjeira, responsável pela maior parte da produção, controlava milhões de hectares. “Tinha ferrovia própria, embarcações, polícia particular, bancos, portos. Era um monopólio. E tudo isso sustentado pelo trabalho braçal e pesado desses indígenas e paraguaios”, pontua.

Para o superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Mato Grosso do Sul, João Santos, conhecer essa história é parte de um processo de fortalecimento da identidade local.
“O ensino básico não aprofunda o suficiente esses temas. As pessoas nem sabem que a erva-mate foi um ciclo econômico que ocupou mais da metade do território sul-mato-grossense. Quando a gente promove eventos como a Jornada do Patrimônio, cria oportunidades para o cidadão se reconhecer e se orgulhar de sua história”, resume.
A Jornada, organizada pelo Iphan, Fundação de Cultura e Conselho de Arquitetura, vai descentralizar diversas atividades, levando caminhadas históricas e oficinas para cidades do Interior do Estado para ajudar nesse processo de conhecimento e pertencimento. Além do ciclo ervateiro, o programa inclui temas como cerâmica Terena, festas populares e patrimônio arquitetônico.
Para Carla Villamaina, compreender o passado dos ervais é também reconhecer dívidas históricas. “A gente ouve um senso comum repleto de preconceitos sobre os indígenas e isso é absurdo. Eles trabalharam muito, sustentaram esse ciclo. Precisamos de políticas que valorizem e deem condições econômicas para essas comunidades. O processo histórico foi cruel com eles”, afirma.
A preservação de acervos, como o de Hélio Serejo, é o que permite reconstruir essa memória. “Estudar e preservar nos ajuda a entender de onde viemos e a criar um sentimento de pertencimento”, reforça João Santos.
A exposição “Erva-Mate – Nos tempos dos Ervais por Hélio Serejo” segue aberta no Arquivo Público Estadual ao longo de agosto, lembrando que, por trás da bebida que hoje reúne amigos no tereré, existiu um capítulo de suor, dívidas e resistência, escrito à força por mãos indígenas que moldaram parte da história de Mato Grosso do Sul.
Confira a programação da Jornada do Patrimônio Cultural
- 12 de agosto – 17h30, no auditório do Museu da Imagem e do Som (MIS): exibição do documentário “CAÁ – A Força da Erva”, de Lu Bigatão, seguida de bate-papo com a diretora, mediado por Marcio Veiga.
- 13 de agosto – 17h30, na Biblioteca Dr. Isaias Paim: Tereré Literário – Pesquisa e produção científica referente à erva-mate e ao tereré, com a Profa. Dra. Carla Villamaina Centeno (UEMS) e o Prof. Dr. Carlos Barros Gonçalves (UFGD), mediação de Prof. Me. Douglas Alves da Silva. Apresentação musical de Fabio Kaida.
- 14 de agosto – 17h30, na Biblioteca Dr. Isaias Paim: Tereré Literário – Em memória a Hélio Serejo, com Ciro Ferreira (Contação de Histórias para adultos – “Dos Hélios, O Serejo”) e Helita Serejo. Abertura com Gerson Douglas.
- 15 de agosto – 17h30, na Biblioteca Dr. Isaias Paim: Tereré Literário – A presença da erva-mate e do tereré em MS: do plantio ao consumo, com David Lourenço (Secretaria de Agricultura Familiar de MS) e Raquel M. K. Rossignoli Barizon (UFMS), mediação de Prof. Me. João Santos (IPHAN/MS). Apresentação musical de Maurício Brito & Humberto Yule.
- 16 de agosto – Encerramento da Jornada, a partir das 17h30, na Superintendência Estadual do Iphan (Rua General Melo, 23, Vila dos Ferroviários). Programação: exposição de artes visuais (acervo adquirido via PNAB/FCMS), Grupo Conterrâneo Capoeira – Mestre Liminha, Feirinha do Laricas (Laricas da Lú, Massas Capivara, Zezé do Acarajé, food trucks), show de Matú Miranda (19h), e intervenção Baile Charme – “O Baile é Nosso e o Charme é Preto” (Letícia dos Santos / TGB DJ).
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