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Comportamento

Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão

Elverson Cardozo | 13/11/2012 11:56
“Sou um menino, mas uso maquiagem, pinto a unha e o cabelo. Já deixei comprido. Às vezes saio de salto alto, às vezes não. Às vezes estou de barba, às vezes não.
“Sou um menino, mas uso maquiagem, pinto a unha e o cabelo. Já deixei comprido. Às vezes saio de salto alto, às vezes não. Às vezes estou de barba, às vezes não.

Ele é todo experimental. Vem sendo “escrita”, como escreveu em uma de suas páginas na internet, desde o dia 13 de fevereiro de 1990. Ao vivo e a cores, José Henrique Yura, de 22 anos, mantém o discurso. Diz que gosta de experimentar a vida, mas faz questão de se mostrar indecifrável. Era o esperado.

“Sou um menino, mas uso maquiagem, pinto a unha e o cabelo. Já deixei comprido. Às vezes saio de salto alto, às vezes não. Às vezes estou de barba, às vezes não. As pessoas me conhecem com o tempo, junto comigo mesmo. É um processo de autoconhecimento que eu tenho interiormente e com o outro. Eu sou um só sendo muitos”. Mas isso, adiantou para os desavisados, vai muito além da sexualidade.

Para a entrevista ao Lado B, realizada na semana passada, durante a tarde, José, Zé ou apenas Yura, como costuma ser chamado, caprichou na produção. Usava um vestido de paetês, calça skinny, jaqueta preta que imita coro de jacaré e um conjunto de colares prateados que combinavam, ao menos pela cor, com os sete piercings espalhados pelo corpo e o anel de caveira cravado no dedo indicador da mão direita.

As pálpebras receberam maquiagem nas cores azul e rosa. O contorno ao redor dos olhos foi feito com um rimel azul turquesa. A boca, coberta com batom nude, contrastava com o cabelo ruivo, um dos vários tons que ele resolveu experimentar desde o começo do ano.

Nos pés, o inseparável par de All Star. Nas mãos, uma ecobag que ele mesmo customizou. A frente do acessório exibia uma caveira de pano costurada em cima de um tecido roxo com as laterais amarelas.

Uma rosa vermelha, presa à parte superior da bolsa, desconstruía ainda mais o look pensando para o bate papo que durou cerca de 45 minutos.

Várias faces - Pergunto, para começar, se ele tem apelido. O rapaz responde que sim e diz que são vários. Depende da situação e do local em que está. No meio artístico, por exemplo, é conhecido como Yura. Profissionalmente e entre os amigos mais próximos, costuma ser chamado por Zé.

Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão
Ele se desmembra, tentando quebrar qualquer padrão

Além dos nomes que carrega, ele se desmembra em vários personagens, em várias figuras. Quebra os padrões que muitos julgam ser de normalidade. Às vezes se veste como mulher. Tem dias que assume o lado masculino.

Já teve o cabelo longo, curto, preto, loiro, azul, vermelho, rosa, branco ou multicolorido. Já se vestiu como roqueira, gueixa, adolescente rebelde ou como alguém que parece ter saído de estórias em quadrinho.

Na cabeça dele, até o abajur virou chapéu. A maquiagem passeia dos tons fluorescentes às artes tribais. O brilho é item obrigatório. Sair com batom preto, azul, amarelo ou qualquer cor que fuja do convencional parece não ser problema.

Zé sabe que chama a atenção, mas não se importa nenhum pouco com os olhares curiosos que o acompanham. Sempre foi assim, desde a infância, quando ainda morava em Aparecida do Taboado, a 481 quilômetros de Campo Grande.

Hoje a estranheza já não causa mais incômodo. Passou a ser bem aproveitada. “Eu converso com as pessoas assim, vou à padaria, no supermercado, na farmácia, em qualquer lugar. Pra mim sempre foi muito natural, só que para as outras pessoas não. Então eu aproveitei isso. Dessa não naturalidade que as pessoas enxergam para mostrar que isso é natural. As pessoas são o que são naturalmente e a gente pode fazer escolhas”, explicou.

Yura se constrói e desconstrói a todo instante, quebra os padrões e vive da própria arte. Gosta de estar com quem não se parece com ele. Quer agregar, conhecer a si próprio e descobrir um novo Zé todos os dias. O motivo de tudo isso? Nem ele sabe. “Isso é meu, entende? Sempre foi assim. Esse foi o sempre”, disse.

“Essa mudança na minha vida é algo muito natural. Eu, enquanto ser humano, indivíduo existente, tenho a necessidade constante de mudança. Eu preciso estar constantemente mudando minha aparência, meu modo de vestir, enfim, preciso mudar meu visual”, completou.

A necessidade é tanta que até a assinatura da identidade foi alterada. “Meu nome de registro é José Henrique Silveira Yura. Passei a assinar José Henrique Yura. Isso aí já é algo que é uma interferência minha no meu próprio nome”, afirmou.

A subversão dos padrões impostos pela sociedade é praticamente uma missão de vida. Essa história de que homem nasceu homem e mulher nasceu mulher nunca convenceu. “X e Y é o que define? Não. Não é o que define uma pessoa. Nosso lado biológico não nos define completamente. Os padrões comportamentais conseguem definir um indivíduo? Também não”, enfatizou.

José Henrique Yuri nasceu em Aparecida do Taboado.
José Henrique Yuri nasceu em Aparecida do Taboado.

História – Filho de um fotógrafo e de uma comerciante, proprietária de videolocadora e loja de roupas, José Henrique nasceu e foi criado em Aparecida do Taboado, onde passou a infância e adolescência ao lado da família que nunca deixou o município. É descendente de japoneses.

Desde cedo o menino sempre se destoou das outras crianças. Deixava a família louca quando resolvia ir para escola com adesivos colados no rosto ou quando calçava uma meia diferente da outra.

Na 5ª série, lembra, andava de um lado para o outro com uma bolsa amarela cheia de chaveiros. Aos 13 anos resolveu pintar o cabelo de verde. Aos 14, fez a primeira perfuração para colocar um piercing.

Para a cidade que atualmente tem pouco mais de 20 mil habitantes, a rebeldia do garoto nunca foi bem vista. Virava assunto de rua. Buxixo de quem nunca acha coisa mais importante para se fazer a não ser falar da vida alheia.

Uma semana antes de completar 18 anos, José se mudou para Campo Grande, onde prestou vestibular para artes visuais na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).

Foi a segunda opção de curso. A primeira, pleiteada em duas universidades do Paraná, foi moda, mas ele não conseguiu se classificar.

Foto para colação de grau.
Foto para colação de grau.

O artista – José Henrique Yura terminou a graduação em artes visuais em 2011. Colou grau em março deste ano.

Na foto tradicional, vestido com a beca e segurando o canudo, ele fez questão de fugir do convencional.

Aparece com o cabelo acobreado jogado na lateral do rosto, com um piercing no nariz, na orelha e na altura do pescoço. As unhas foram pintadas de azul. Os olhos também. A boca, com a maquiagem feita, parece estar cortada.

Único artista da família, Yura nunca pensou que fosse trabalhar com o próprio corpo. Antes de entrar para universidade, não tinha qualquer contato com a arte contemporânea. A ideia, quando resolveu fazer o curso, era pintar.

"Acabei conhecendo outras linguagens, conhecendo muitas coisas que me estimularam para essa arte de agora, que é mais voltada para uma reflexão.

Eu conheci a linguagem da performance e me apaixonei. É um tipo de arte que a pessoa usa o próprio corpo e a expressão do corpo para fazer o trabalho", explicou.

X, Y e Zé - O artista foi um dos selecionados para a edição 2012 do Salão Artes de Mato Grosso do Sul, aberto no dia 30 de novembro. A obra dele - que ficará exposta no Marco (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul) até o dia 23 de fevereiro -, é uma fotoinstalação intitulada “X, Y e Zé”.

Yura deus as caras e mostrou personalidade. O artista reproduziu, em uma ampliação, a cópia do próprio RG. Acima do documento, ele aparece em outras seis versões, sempre na mesma posição, com as alterações de roupas e maquiagens assinaladas.

Fotoinstalação X, Y e Zé. (Foto: Simão Nogueira)
Fotoinstalação X, Y e Zé. (Foto: Simão Nogueira)

Na primeira, está barbado, trajando uma camisa marrom. Na segunda, sem barba, a roupa escolhida foi um bolero verde e uma camisa branca de algodão. Em outra, com visual mais andrógino, José Henrique surge maquiado, com desenhos abstratos de referências tribais.

Na última, com o cabelo chapado, ele aparece com a sobrancelha “feita”, com sombra grafite cintilante e batom rosa. A blusa escolhida tem estampas de arcos e arabescos.

Quem visita a fotoinstalação também pode interagir. Na “X, Y e Zé”, o visitante pode formar um novo personagem, utilizando recortes das seis fotografias em destaque.

“X e Y é o que define? Não. Não é o que define uma pessoa
“X e Y é o que define? Não. Não é o que define uma pessoa

No catálogo, a explicação é biológica. “... Somos divididos em ‘machos’ e ‘fêmeas’ [...]. Possuidores de identidades, somos também capazes de gerar processos de identificação, que também são diversos e comuns a nós”, escreveu.

A intimidade que tem com a fotografia, completou, é um estímulo para se reencontrar. A vida íntima exposta no universo artístico foi a maneira que achou para estabelecer uma aproximação do seu universo íntimo com o mundo externo.

"Esse trabalho é voltado muito à questão da memória dentro da minha intimidade, é por isso que eu coloco no trabalho meu apelido. Ele é uma coisa meio biográfica mesmo", disse.

Se X e Y não define, fica a resposta do artista para um pergunta que ouve com frequência: "Costumam me perguntar: 'Você gosta de ser tratado como menina ou como menino?'. Isso é clássico. Eu falo: 'você me trata da forma que se sente bem. Para mim, não faz diferença'".

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