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Comportamento

Emoções e histórias do matuto que não cansa de trabalhar aos 83 anos

Após aventuras, aposentado busca paz vendendo sorvete e distribuindo conselhos

Flávia Lima | 29/04/2015 10:17
Sob a sombra de uma das árvores da praça do Rádio Clube, o aposentado Amado Julião recorda o passado entre uma venda e outra de água. (Foto:Alcides Neto)
Sob a sombra de uma das árvores da praça do Rádio Clube, o aposentado Amado Julião recorda o passado entre uma venda e outra de água. (Foto:Alcides Neto)
“Quando o caminhão atolava não tinha jeito. Era preciso descarregar toda a carga sozinho e buscar uma parada até o tempo melhorar”, conta (Foto:Alcides Neto)
“Quando o caminhão atolava não tinha jeito. Era preciso descarregar toda a carga sozinho e buscar uma parada até o tempo melhorar”, conta (Foto:Alcides Neto)
Ele já foi até com guarda-chuva e trabalhou sob temporal (Foto: Alcides Neto)
Ele já foi até com guarda-chuva e trabalhou sob temporal (Foto: Alcides Neto)

Há quase dez anos ele está no mesmo local, sob a sombra de uma árvore em frente ao ponto de ônibus da Avenida Afonso Pena, na praça do Rádio Clube, Centro de Campo Grande. É nesse clima bucólico que o aposentado Amado Julião, 83 anos, trabalha para reforçar o salário mínimo, fruto de 50 anos de trabalho. Hoje, ele vende sorvete e água, mas sua vida profissional já foi repleta de aventuras.

Apesar das muitas histórias que viveu e de acompanhar o progresso da cidade através do burburinho da região central, seu Amado mantém o ar “matuto” e desconfiado. Faz uma série de perguntas antes de começar a narrar suas aventuras pelo país, que conheceu através do trabalho de topógrafo e caminhoneiro.

Mesmo sem esboçar um sorriso, inclusive quando lembra das passagens engraçadas, o aposentado aos poucos se deixa levar pela emoção e enche os olhos de lágrimas quando fala da família e das dificuldades que viveu para criar os cinco filhos.

O primeiro emprego veio aos 20 anos, quando ele ainda morava em Santa Rosa de Lima, município , como ele conta, “prá lá” de Pedro Juan Caballero. Apenas com o primeiro ano do curso de contabilidade concluído, Amado veio para Campo Grande acompanhando o pai, que trabalhava como topógrafo em um escritório de engenharia.

“Meu pai disse que já estava passando da hora de eu começar a trabalhar e eu concordei, nunca gostei de depender de ninguém”, ressalta. E foi com esse espírito de responsabilidade e curiosidade que ele abraçou a missão de viajar pelo interior do Estado, ainda em formação, para ajudar na criação de vários municípios e participando de obras para o governo. Um desses municípios foi Angélica, por onde ele passou na década de 50 para trabalhar como topógrafo.

Ele e a equipe, liderada pelo pai, foram os responsáveis pelas medidas de área, identificação de relevo e perímetro, que originou os primeiros loteamentos da cidade. O serviço era árduo e as viagens chegavam a ser concluídas a pé, já que em muitos trechos o trânsito de animais era inviável devido a mata fechada.

O trabalho era mesmo de desbravador e obrigava seu Amado a ficar longe de casa por até quatro meses. O serviço, que na verdade era uma verdadeira missão, só era concluído com o auxílio de índios da região. “Eram eles que ajudavam a abrir as picadas e nos orientavam sobre os locais para montar o acampamento”, recorda.

Eram os índios, inclusive, os principais responsáveis pela segurança da equipe de profissionais. Certa vez seu Amaro se deparou com uma onça e quando foi sacar o revólver para atirar no bicho, um dos índios do grupo surgiu e espantou o animal. “Não tive medo, mas fiquei paralisado”, afirma.

Amado revela que ganhou muito dinheiro, mas também sofreu muito. “Passei muita fome, sede e frio. Não desejo para ninguém isso”, diz.

Cansado da função, após quatro anos ajudando o pai, ele decidiu virar caminhoneiro. Se nos dias atuais é um trabalho que também exige espírito aventureiro e coragem, imagine há 40 anos, quando as estradas não tinham asfalto e a segurança era praticamente inexistente nos sertões do país.

Amado comprou um caminhão e começou transportando madeira até Pedro Juan Caballero. Uma viagem que levava pelo menos cinco dias. “Hoje a gente faz esse trajeto em cinco horas”, compara.

Quando os carregamentos de madeira ficaram escassos, ele passou a transportar bebidas e ampliou suas viagens para São Paulo e Goiás. Os dias de fome e frio que passou no interior do antigo Mato Grosso deram lugar a novas descobertas, mas também a outras dificuldades. A pior delas eram os dias chuvosos que atrasavam o carregamento em até uma semana. “Quando o caminhão atolava não tinha jeito. Era preciso descarregar toda a carga sozinho e buscar uma parada até o tempo melhorar”, conta.

Emocionado, ele não segura as lágrimas quando lembra das dificuldades que passou. (Foto:Alcides Neto)
Emocionado, ele não segura as lágrimas quando lembra das dificuldades que passou. (Foto:Alcides Neto)
“Sempre digo que o trabalho é o melhor remédio para curar os problemas" (Foto: Alcides Neto)
“Sempre digo que o trabalho é o melhor remédio para curar os problemas" (Foto: Alcides Neto)
“Passei muita fome, sede e frio. Não desejo para ninguém isso”, diz (Foto: Alcides Neto)
“Passei muita fome, sede e frio. Não desejo para ninguém isso”, diz (Foto: Alcides Neto)

Tristezas e alegrias - Desses dias, ele lembra com carinho dos amigos que fez na estrada e que dividiam os mesmos problemas. “A gente compartilhava até a colher para comer. Louças e talheres eram artigos de luxo”, recorda.

Foram 17 anos cortando as estradas do Sudeste e Centro-Oeste, até que em três ocasiões, devido ao cansaço, dormiu ao volante e quase sofreu um acidente. “Foi quando decidi parar e buscar algo mais tranquilo”, afirma. A partir daí ele decidiu ficar em Campo Grande e buscou emprego como motorista particular e em empresas. Ficou nessa função até os 70 anos, quando aposentou praticamente por idade.

“Naquela época a gente não tinha muito conhecimento e trabalhei muitos anos sem registro. Só consegui recolher uns 15 anos de INSS”, ressalta. Apesar do pouco reconhecimento e das agruras, seu Amado não lamenta as dificuldades. “Hoje tenho minha casa, paz e tranquilidade. Ajudei meus filhos e isso é minha maior satisfação”, destaca.

Para ele, os jovens de hoje se irritam com facilidade e logo abandonam o trabalho. “Ninguém tem paciência. Falta solidariedade e qualquer coisa é motivo para sair do emprego. Os pais precisam orientar melhor, senão não dá para formar um filho bom”, ensina.

De todas as aventuras que passou, a única tristeza é não ter feito amigos verdadeiros. Talvez seja esse o motivo da sisudez do aposentado, que se contenta em passar os dias sentado sob a árvore que virou seu escritório e se transformou em um consultório sentimental. “Muita gente vem comprar meus produtos, mas é só desculpa para conversar porque se sente sozinho. Muitos até choram contando suas dificuldades financeiras ou familiares”, revela.

“Acho engraçado ver como tudo mudou, mas a honestidade e o ânimo para trabalhar não podem mudar" (Foto: Alcides Neto)
“Acho engraçado ver como tudo mudou, mas a honestidade e o ânimo para trabalhar não podem mudar" (Foto: Alcides Neto)

Nessa hora ele deixa de ser o caminhoneiro ou topógrafo para encarnar um psicólogo e baseado nas experiências vividas, busca a melhor orientação. “Sempre digo que o trabalho é o melhor remédio para curar os problemas. Nessa vida a gente só depende de nós mesmos. Temos que viver pensando no futuro, em como podemos ajudar os outros”, ensina.

Mesmo com problemas de saúde, ele nem pensa em parar e faz questão de engrossar a lista dos 5 milhões de brasileiros que se aposentam mas continuam na ativa, segundo dados do IBGE. Enquanto a média da população se aposenta aos 53 anos, faça chuva ou sol, ele está lá, distribuindo conselhos entre um sorvete e outro. O passado nem sempre habita seus pensamentos. Ele prefere observar o passo apressado dos jovens e a “modernidade” da cidade, como diz.

“Acho engraçado ver como tudo mudou, mas a honestidade e o ânimo para trabalhar não podem mudar. As escrituras dizem que não podemos perder a fé e a esperança. Só assim construímos alguma coisa”, finaliza. E quando perguntado sobre qual das profissões mais gostou de exercer, seu Amado responde sem titubear: a de sorveteiro, e porque não, de conselheiro.

Tranquilo, seu Amado dá conselhos aos jovens que estão começando a trilhar o caminho profissional.  (Foto:Alcides Neto)
Tranquilo, seu Amado dá conselhos aos jovens que estão começando a trilhar o caminho profissional. (Foto:Alcides Neto)
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