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Comportamento

Filho resgata pai de asilo e escreve o fim da história de uma carta extraviada

Paula Maciulevicius | 28/06/2014 07:52
José das Neves e o filho, 40 anos depois da primeira despedida. (Foto: Pedro Peralta)
José das Neves e o filho, 40 anos depois da primeira despedida. (Foto: Pedro Peralta)

Ele escreveu em dezembro, pedindo visita no Natal, mas a carta voltou e passou a acompanhar 'seo' José das Neves, de 75 anos, no bolso. Dias atrás, o relato endereçado à família em Mauá, no ABC Paulista, saiu da camisa de José para a gaveta do asilo São João Bosco, em Campo Grande. O peito que guardou a escrita deu lugar ao abraço do filho. Separados por uma carta que nunca chegou, os dois saíram do asilo para reescreverem um capítulo juntos. Dessa vez sob o mesmo teto, como há 40 anos.

“Agora ele quer me levar. Deixei ele aos 7 anos, quando abracei para ir embora. Ele chorando, a irmã chorando, eu disse que ia voltar, que podia demorar, mas eu voltava”, lembra José das Neves, que nunca voltou.

Veio parar em Campo Grande, morava sozinho numa casa no São Conrado até ter um derrame. À época, o filho veio visitá-lo. O último abraço e a última troca de olhares aconteceram há uma década.

Em dezembro, o Lado B esteve no asilo, lugar que o acolheu nos últimos anos. 'Seo' José exibiu a carta que guardava no bolso. Analfabeto, foi um cuidador que escreveu o pouco que ele tinha a dizer. “É pra vocês duas que eu pego minha caneta para dar a notícia que vocês já sabem: Claudemir José das Neves veio até aqui e viu minha situação. Vai fazer três ou quatro anos que eu me encontro num asilo de idosos. O asilo é grande e quem toma conta é o São João Bosco. Minhas notícias são pequenas, desejo a todos vocês um Feliz Natal e um próspero Ano Novo. Espero que venham me visitar”.

A carta foi mandada para o endereço que José tinha, da casa onde deixou a mulher e dois filhos há 40 anos.

José viveu os últimos anos no Asilo São João Bosco. (Foto: Simão Nogueira)
José viveu os últimos anos no Asilo São João Bosco. (Foto: Simão Nogueira)

“A rua permanece a mesma, mas mudou o número. Por isso a carta não chegou”, explica o filho, Claudemir José das Neves, de 47 anos. O homem, hoje advogado, casado e com dois filhos, teve notícias do pai pela reportagem. À época alguém do hospital onde José esteve internado antes de ir para o asilo o contatou. “Alguém me achou e mandou a reportagem. Foi por telefone, num número antigo que eu mal usava”, detalha.

Em abril, Claudemir ligou para o asilo, teve notícias do pai e manifestou o desejo de vir vê-lo. Quatro dias depois ele deixou o Estado de São Paulo, tomou um avião e adentrou pelas portas do recanto num reencontro emocionante. “Me falaram tem uma visita importante te esperando. E eu pensava que era uma mulher da televisão, mas não. Ele veio chegando... Eu, eu achei impossível, era muito difícil para um pai pobre que nem eu, ter um filho que venha atrás”, narra o pai.

Seo José fala com certa dificuldade, consequência do derrame. Mas hoje, as palavras saíam de dentro, do coração, da alma, a impressão que dava era de que a emoção falava por ele. “Até assustei. Ele disse 'ô pai, vim aqui por causa disso, quero levar o senhor junto de mim, quer?' Foi uma emoção muito grande, dobrada”.

O pai que agora se descobriu avô de dois netos, de 10 e 14 anos, com quem em breve conviverá, agradeceu à reportagem. “Você apareceu, falou 'no rádio', muito obrigada e agora nós estamos nos vendo”. A simplicidade de José não o permite diferenciar os veículos de comunicação, como se precisasse, o importante é que ele, diferente dos outros 100 idosos do asilo, está voltando para a casa, para o lar que deixou há quatro décadas.

Claudemir foi ao asilo na sexta, levar o pai para a casa nova.
Claudemir foi ao asilo na sexta, levar o pai para a casa nova.

A história na versão de Claudemir é longa, mas ele também encurta. “Meu pai saiu de casa quando eu tinha 8 anos, depois vim reencontrá-lo num momento dentro destes 40 anos, por uma situação delicada. Depois eu perdi esse contato. Mandava carta e voltava. Eu não tinha referência do meu pai”, se explica.

Há dois meses, quando o advogado veio visitar o pai, estudou as mudanças estruturais e emocionais que a volta de José traria. Creio eu que neste tempo ele remexeu num passado que ficou na infância, lá atrás. “Não é uma decisão só minha. Sou casado, ele vai para a minha casa. Foi uma decisão bem pensada, estamos mudando o paradigma, é uma readaptação”, afirma.

José das Neves evoluiu muito bem no asilo desde que chegou. No início ele não falava e no presente se comunica pelos cotovelos. Sendo bem realista, o pai já estava bem assistido e ele podia não querer interferir neste processo. “Mas minha formação religiosa não me permitiu. Eu briguei comigo mesmo. Eu prego a união familiar, seria um contrasenso isso. A gente fica numa faca de dois gumes. Eu acho que nenhuma das formas estaria errada, mas a mais acertada era essa, aqui ele tem estrutura boa, mas é uma tentativa que vamos fazer e tende a dar certo. O primeiro ponto é a vontade e eu tenho vontade. Até me emocionei agora”, descreve segurando as lágrimas.

A conversa final entre pai e filho, final no asilo, foi como seria a volta. “É um aperto bom, o dia em que saí de lá...” dizia o pai. A cena era como um filme. “Será uma nova história pai, de uma história longa...” Nenhum dos dois terminava a frase. Não era necessário. Eles se entendiam pelo olhar. Um carinho e um amor que ficaram distantes 40 anos.

José das Neves seguiu de avião, a primeira viagem aérea da vida, na tarde dessa sexta-feira. “Saudade? Vou sentir sim. De tudo o que está aqui. Eu gostei muito deles. Isso aqui não vai sair da minha cabeça. Vou dormir e acordar pensando nesse povo. É uma coisa que eu plantei que nunca mais vai acabar”.

Antes de se despedir do que Claudemir nomeou “os donos da história”, o filho conta. “Tem um detalhe, tenho uma carta perdida também, desta mesma época. Escrevi e voltou. Só não foi no mesmo Natal, mas foi num final de ano”. E assim termina aqui a história, de um filho que separado por uma carta, conseguiu notícias e voltou para resgatar o pai.

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