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Comportamento

Nem câncer acabou com aventura de Carlos e Joria em barraca no teto de camionete

Casal que teve primeiro encontro em ônibus coleciona destinos pelo Brasil acampando em barraca que vai de garupa de moto ao teto de caminhonete.

Kimberly Teodoro | 02/04/2019 08:31
Há 44 anos o casal compartilha o amor pela estrada (Foto: Henrique Kawaminami)
Há 44 anos o casal compartilha o amor pela estrada (Foto: Henrique Kawaminami)

A caminhonete branca equipada com um baú na carroceria e uma barraca de teto, dessas que só estamos acostumados a ver em filmes de aventura norte-americanos, chama a atenção e reúne curiosos. Com vidros escuros, o mistério dos ocupantes só é quebrado quando as portas se abrem e Carlos Roberto da Silva desce acompanhado da esposa, Joria Pessoa.

Os dois são a prova de que idade é uma questão de espírito e o deles não poderia ser mais livre. Ele com 70 anos e ela com 65, acumulam 44 anos de estrada desde os primeiros quilômetros juntos em um ônibus de Recife para o Rio de Janeiro. Uma sequência de acasos que parecem até artimanhas do destino para apresentar um ao outro. O casal já viveu aventuras que não cabem nos dedos, tantas que é impossível contabilizar o número de destinos ou desvios feitos ao longo do caminho, dividindo um amor tão grande um pelo outro e por desbravar o desconhecido, que nem mesmo o câncer de Carlos foi capaz de mantê-los parados por muito tempo.

Joria é inteira feita de cores, desde as roupas leves até a estampa dos óculos de grau. Pode não ser de propósito, mas a composição inteira combina com a personalidade. O nome único é uma junção de José com Maria, escolhido pelos pais uma homenagem aos avós, a primeira feita involuntariamente, já as seguintes foram tatuagens para marcar no corpo o amor pela família. Três pássaros em traços finos e aquarela representam as filhas, um leãozinho dorminhoco foi dedicado aos netos, “os dois do signo de leão, dormindo porque estão na adolescência, na fase da preguiça” e no pulso direito, o lado do coração, o apelido do marido “Carlão” em letra cursiva.

A barraca moderna é montada no teto da caminhonete, acompanhando o casal por onde for necessário (Foto: Henrique Kawaminami)
A barraca moderna é montada no teto da caminhonete, acompanhando o casal por onde for necessário (Foto: Henrique Kawaminami)
Antes da caminhonete, a barraca de teto acompanhava um Jipe (Foto: Arquivo Pessoal)
Antes da caminhonete, a barraca de teto acompanhava um Jipe (Foto: Arquivo Pessoal)
São mais de 20 anos viajando sobre duas rodas (Foto: Arquivo Pessoal)
São mais de 20 anos viajando sobre duas rodas (Foto: Arquivo Pessoal)

Com os cabelos e bigode brancos em contraste com a pele bronzeada do sol, Carlos é um pouco mais sóbrio, vestido em tons pastéis em um estilo mais esportivo de quem prioriza o conforto das bermudas e camisetas no calor de Campo Grande. A irreverência fica por conta do bom humor e da disposição para dar e vender. Quem observa o “senhor de idade” subindo na carroceria da caminhonete para armar a barraca de teto e “montar acampamento”, ainda com a agilidade de quem não passou dos 40, nem imagina o linfoma de não-hodkin, um câncer que atinge o sistema linfático detectado em 2005 e que levou 6 anos para se tornar apenas uma sombra de dias difíceis em um passado que, por vontade própria, ele raramente trás a tona.

“Eu sempre fui um cara que vinha de casa a pé até o parque, corria 30 km, eu tinha disposição e força. De repente eu não conseguia arrastar uma cadeira no chão, eu perdi totalmente a força. É um momento desesperador em que você começa a ver a luz no fim do túnel se apagando”, uma declaração que mal dá um parágrafo em uma conversa que levou quase duas horas sob o céu de outono do Parque das Nações Indígenas.

Ao contrário de muitos, ele prefere não reviver a dor desnecessariamente e encerra o assunto dizendo que apesar de “sócio do clube no Hospital do Câncer em Barretos”, que ainda visita a cada dois anos, só para manter o check-up em dia, a doença está curada e não deixou sequelas, portanto, a única relevância de falar sobre ela é para alertar outras pessoas. “O conselho que eu dou é que, tomara que não aconteça, mas se um dia você ou alguém próximo descobrir um câncer, não espere a próxima consulta com o médico ou novo tratamento chegar aqui. Pega os exames e vai para Barretos, a cura é uma questão de tempo, quanto mais cedo diagnosticado e tratamento, mais chances de sobreviver”.

Coloria dos pés a cabeça, Joria é aos 65 anos, dona de um auto astral e leveza raros de se ver (Foto: Henrique Kawaminami)
Coloria dos pés a cabeça, Joria é aos 65 anos, dona de um auto astral e leveza raros de se ver (Foto: Henrique Kawaminami)

Foi seguindo essa lógica que Carlos e Joria percorreram de moto os 693,2 km que separam Campo Grande e Barretos, ele dirigindo e ela na garupa. A primeira quimioterapia foi em julho de 2005, a última aconteceu em fevereiro de 2006, o que em momento algum impediu os dois de continuar viajando e nem de assistir o show dos Rolling Stones na Argentina, dessa vez de avião, uma dos poucos destinos em chegaram pelo ar e não por terra.

O hábito de viajar é antigo, sempre viagens curtas que duravam de 15 a 30 dias aproveitando as férias para conhecer o Brasil. Foram 20 anos desbravando a estrada sobre duas rodas, a bagagem era no máximo uma mochila e uma barraca para acampar, já que economizar no hotel é um jeito de sobrar mais dinheiro para a gasolina e ir mais longe.

Hoje, a Harley que foi sonho de consumo do casal durante muitos anos, mas não a primeira companheira de viagens, descansa na garagem. Embora nenhum dos dois sequer cogita a hipótese de desfazer-se dela que já esteve em Porto Murtinho, Tiradentes em Minas Gerais, Blumenau em Santa Catarina, inúmeras cidade em São Paulo. O aumento do número de rodas no veículo veio com o tempo e com a necessidade de mais conforto para ir mais longe.

A sintonia é tanta, que a conversa é literalmente um bate-bola, em que a cada história um complementa a fala do outro, principalmente quando é para falar sobre o estilo de vida. “As pessoas acham que para ser legal, você precisa ter um motorhome, a melhor barraca, ou ficar no hotel mais caro,mas aprendemos que quem quer ir até algum lugar, vai de qualquer jeito, bicicleta, moto, a pé. Basta a vontade de pegar a estrada.” começa Carlos. “Já pensamos em uma kombi ou um motorhome, mas para o nosso tipo de passeio, nenhum dos dois nos ajudaria. Eles funcionam muito bem no asfalto, mas por exemplo, fomos até a Serra da Canastra em São Roque de Minas, em que a estrada é de terra, mal conservada e cheia de ladeiras em que para chegar é só com um veículo 4x4”, completa Joria. “O que percebemos é que os lugares mais bonitos são de acesso limitado”, simplifica Carlos.

Mais sóbrio na escolha das roupas, a personalidade de Carlos é marcada pelo bom humor (Foto: Henrique Kawaminami)
Mais sóbrio na escolha das roupas, a personalidade de Carlos é marcada pelo bom humor (Foto: Henrique Kawaminami)

Mesmo com roteiro que começa a ser planejado com quase um ano de antecedência, eles nunca se deixaram limitar, sem medo de mudar a rota sempre que uma placa na estrada apontasse uma direção desconhecida. "Damos muito valor para as coisas comuns do caminho, como o mercado da cidade, museus, locais históricos que nos contem um pouco da cultura de quem mora ali. Para ter ideia, eu tenho um Jipe e queria uma roda de um Jipe Samurai que não se fabrica mais. Procurei na internet e só achei em Brasília, então eu falei para Joria, arruma a mala, vamos até lá buscar a roda. Ela disse: Você é doido, mas eu vou. Arrumou a mala e nós fomos, na volta passamos por uma placa em que estava escrito: Pirenópolis, 60 km. Sabíamos da fama do empadão goiano que eles fazem lá, que é uma delícia, então fizemos o desvio. Na cidade, perguntaram se já estivemos em Goiás Velho, não conhecíamos e é a terra de Cora Coralina, então fomos conhecer a casa dela. Todas as viagens são assim", conta Carlos.

A caminhonete veio para carregar “na mala” os netos com mais conforto, hoje adolescentes, eles cresceram ouvindo as histórias que os avós traziam na bagagem a cada nova viagem e começaram a querer embarcar junto. As filhas, que aprenderam na prática o significado de limites territoriais, assim como história, geografia e puderam estudar os biomas brasileiros de perto, comendo sempre a comida e ouvindo a música de cada região em uma verdadeira imersão cultural. Agora é a vez dos netos de aproveitarem a vivência nos intervalos do ano letivo.

Aposentar a barraca é algo que nem passa pela cabeça de Carlos e Joria, que já planejam conhecer a Praia do Cassino, um percurso de 200 km entre o oceano e a Lagoa dos Patos, um mundo que se acaba em água no Rio Grande do Sul e leva até o Chuí, literalmente o fim do Brasil. Há destinos desconhecidos como o Jalapão, mas que também faz parte dos planos do casal, que se depender da disposição ainda vai gastar muito pneu da caminhonete que faz as vezes de meio de transporte e casa.

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Dentro do baú na carroceria da caminhonete fica a cozinha, com geladeira e fogão portáteis (Foto: Henrique Kawaminami)
Dentro do baú na carroceria da caminhonete fica a cozinha, com geladeira e fogão portáteis (Foto: Henrique Kawaminami)
A disposição é tanta que nem a idade pesa na hora de armar a barraca e subir no teto da caminhonete (Foto: Henrique Kawaminami)
A disposição é tanta que nem a idade pesa na hora de armar a barraca e subir no teto da caminhonete (Foto: Henrique Kawaminami)

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