ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  26    CAMPO GRANDE 23º

Comportamento

O que aprendi e gostaria que todos soubessem sobre adolescentes e a prisão

Ana Maria Assis | 02/04/2015 06:56
Ana Maria, dia desses no trabalho como jornalista.
Ana Maria, dia desses no trabalho como jornalista.

Aquela mulher de cabelos longos, arrumados em um coque alto, de roupas simples, mas muito comportadas, chegava cedo para o atendimento e sentava à minha mesa com linha e uma agulha de crochê. Ela não levantava os olhos, dizia o nome completo do filho e aguardava para saber sobre o andamento do processo. Quando eu começava a falar, percebia as lágrimas caindo sobre as linhas do crochê. Muito séria, se dizia algo, era apenas: “Não sei por que ele fez isso”. E essa cena se repetiu por vários meses.

Penso que aquele crochê era apenas uma desculpa para que ela não precisasse levantar a cabeça. Seu filho estava preso por roubo com arma de fogo, mas como ele é adolescente, o modo de falar é “interno, cumprindo medida socioeducativa”. Ela foi uma das primeiras pessoas que atendi aqui, na Defensoria Pública da Infância e Juventude, quando deixei o Jornalismo pra dar início a minha carreira no Direito.

Sou assessora de defensor público e meu chefe, Eugênio Luiz Dameão, é defensor há cerca de 20 anos e tem uma década de experiência com o direito da criança e do adolescente. Ele me ensinou a não chamar ninguém de “menor”, isso é coisa do Código Menorista e, ainda, marginaliza o ser humano. O doutor Eugênio e sua anterior assessora, Fernanda, trataram de retirar todos os vícios de linguagem que eu tinha enquanto jornalista.

Depois de oito horas, divididas entre atendimentos de mães de adolescentes, leitura de relatórios das Uneis e todos os problemas que envolvem violência, drogas e mortes, não houve uma noite em que ao deitar para dormir eu não pensasse em um deles. Quando repórter eu também era assim, dormia pensando nas histórias das pessoas.

Por esta mãe que fazia crochê e por muitas outras, nunca me faltou a vontade de escrever em defesa de alguém.

Antes de me formar em Direito, como jornalista já acompanhava a realidade triste dos bairros de periferia. Morei por 18 anos em uma região que vejo frequentemente nos processos da Vara da Infância e Juventude. Então, saber que tudo isso existe, eu já sabia, mas este período de um ano afastada do jornalismo, e vivendo o direito da criança e do adolescente, amadureceu conceitos que estavam pré-moldados.

Atualmente nós trabalhamos em um Núcleo em Defesa da Criança e do Adolescente. O doutor Eugênio tem entre suas atribuições a atuação em defesa dos adolescentes nos processos relativos à prática de atos infracionais. Na sala ao lado da nossa, a defensoria é atuante em processos de guarda e medida de proteção, nos quais muitas crianças são abrigadas devido ao descuido dos pais que usam drogas ou cometem abusos. Preciso dizer que as histórias que chegam ao núcleo da Infância, tanto na sala ao lado quanto na nossa, estão interligadas?

Algumas vezes, a mãe do adolescente infrator chega acompanhada de seu irmão, mais novo ou mais velho.

Percebemos então, que o irmão não possui histórico de ato infracional, ou seja: Ele teve as mesmas oportunidades e escolheu o “caminho do bem”. Este é o argumento de muita gente, mas vale refletir: Se eu estivesse numa situação de vulnerabilidade, qual dos dois irmãos eu seria?

Mesmo com tudo “do bom e do melhor”, com a mãe pegando no pé e dizendo que “você não é todo mundo”, ainda assim, quantos não experimentam uma droga ilícita, não dirigem alcoolizados, não se metem em brigas, não cometem erros... Imagina, então, quem nunca teve a oportunidade de acertar?

Os adolescentes que cometem atos infracionais graves são apreendidos, encaminhados para uma unidade de internação que não é muito diferente de uma prisão, por vezes, parece até pior. Quem disse que há impunidade? Eles sofrem todo tipo de violência que um adulto criminoso também é submetido em nossa sociedade. O Brasil nem chegou a experimentar a aplicação adequada da legislação, garantindo a socioeducação, e já quer tapar o sol com a peneira, achando que reduzir a maioridade penal vai resolver alguma coisa.

Quando a história desses meninos vem à tona é que a coisa pega para quem trabalha com isso. No começo, eu lia os relatórios de cumprimento de medida socioeducativa fazendo caretas, com a mão na testa, dava um desespero e eu queria poder fazer algo além de peticionar, queria gritar “pelo amor de Deus”. Mas peticionar é pedir ao juiz, e como todos nós sabemos, juiz não é Deus.

Os adolescentes, quando chegam ao ponto de cometer um ato infracional grave, não têm mais medo de nada, por não ter nada a perder. Não será a ameaça de uma lei penal que vai repreendê-los, muito menos recuperá-los.
Uma das cenas mais marcantes para mim foi quando uma mãe chegou com aquela aparência comum das mulheres que costumo atender, cheia de sofrimento.

Sentou-se e como sempre eu disse: “Bom dia, em que posso ajudar?”. A mãe disse que seu filho, que eu já havia atendido algumas vezes, foi assassinado devido a conflitos com traficantes. Nós tínhamos pedido a progressão dele, saiu da unidade e foi assassinado. Depois percebi que isso era comum, processos em que pedimos a extinção porque o adolescente foi morto, por vingança ou envolvimento com tráfico.

As drogas sustentam de alguma forma a violência. Aqui percebemos o papel de cada uma delas. Da bebida, que torna o homem violento com a família; da maconha, que torna o menino indisciplinado e aéreo, e ainda é a passagem para outras drogas; do crack e da cocaína que levam o dependente a ser capaz de qualquer coisa. E para entrar nesse ciclo, não é uma mágica e ninguém nasce viciado, alguma coisa aconteceu com este adolescente, que há pouco tempo era uma criança.

Poucos pais são atendidos aqui, a maioria das vezes quem vem é a mãe. Em relação às meninas, já li um relatório que vinha com uma carta, em que a adolescente de 17 anos, que havia cumprido um bom tempo de internação, dizia: “Por favor, não me tirem daqui. Se eu sair não tenho para onde ir”. Acredito, ouvindo essas mães e esses meninos e meninas, que a vida sempre foi assim, sem rumo, sem escolha.

Comecei a dizer aos adolescentes que estavam conseguindo se reerguer que poderíamos encaminhá-los a entrevistas de empregos, já que diziam que não conseguiam trabalho devido à idade. Resultado: No outro dia eles chegaram antes de mim na Defensoria Pública. Arrumados, limpos, sem boné, e com um rosto que misturava orgulho e esperança.

Deixando de lado esse assunto da redução da maioridade penal, deixando de lado quem é a favor, quem é contra. Tenho certeza que se as pessoas conhecerem as histórias de adolescentes que cometeram atos infracionais, ao menos vão entender a importância do investimento em educação, e vão se surpreender em que ponto está o abandono da infância nos dias de hoje. Talvez porque criança não vota, não sei.

Todos têm medo da violência, mas isso não justifica eliminar a responsabilidade do Estado e massacrar seres humanos que já nasceram condenados.

A mãe que fazia crochê não vem mais à Defensoria. O filho dela saiu da Unidade de Internação, pagou pelo que fez ficando quase um ano interno e depois mais um tempo em medida de meio aberto. Para nós, que estamos livres, um ano não é nada. Mas para um ser humano preso durante o seu período de adolescência um ano significa muito. Este adolescente teve a oportunidade de cumprir medida de meio aberto, após mostrar em seus relatórios o quanto estava arrependido e preparado para retornar à sociedade.

Hoje, com o apoio dos pais, ele terminou os estudos e está trabalhando em um local de circulação de várias pessoas, talvez você já o tenha visto, talvez ele já tenha te ajudado.

Enfim, sobre o que faço hoje em dia, é isso. Amanhã, novas histórias eu vou ouvir, se Deus me conceder a oportunidade de dizer mais uma vez: “Bom dia. Pode entrar e tira esse boné”.

Nos siga no Google Notícias