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Comportamento

Quando a gente se torna pai, todo conceito sobre nossa missão e futuro muda

Thailla Torres | 13/08/2017 07:10
Tudo muda no momento em que Evandro segurou Julia nos braços pela primeira vez.(Foto: Arquivo Pessoal)
Tudo muda no momento em que Evandro segurou Julia nos braços pela primeira vez.(Foto: Arquivo Pessoal)

Voz da Experiência é escrita pelo cineasta Evandro Sudre, de 41 anos, que roda o mundo como missionário. Movido pela fé, ele abriu mão do modo de vida convencional para contribuir com o que ele acredita ser solidariedade. Mas no instante que a filha Júlia nasceu ele descobriu a beleza de querer cuidar e proteger.

Ada, Evandro e Julia. (Foto: Thailla Torres)
Ada, Evandro e Julia. (Foto: Thailla Torres)

"Meus primeiros contatos com a missão foram no início dos anos 80, quando eu tinha apenas 5 ou 6 anos de idade e acompanhava meus pais na visita às áreas mais pobres da periferia de São Paulo. Ajudar famílias e pessoas em zonas de vulnerabilidade, e lutar pra oferecer alimentos, roupas e até abrigo aos desfavorecidos são, de alguma maneira, parte do meu DNA. Aprendi em casa, na educação simples, mas muito honesta e valorosa que meu pai me deu.

Segui servindo como “embaixador” (que é uma espécie de escoteiro cristão) desde pequeno até uma parte da minha adolescência e mais tarde começaram as viagens pelo mundo pra fazer e pra ensinar sobre missões nos 5 continentes.

Eu comecei como todo bom mochileiro, sozinho, com um espírito aventureiro, uma paixão desmedida por servir às pessoas e seguramente um parafuso à menos na cabeça – risos. Durante os mais de 20 anos em que rodei o mundo eu dormi em quase todo tipo de lugar que se possa imaginar, desde carros abandonados à barracas armadas em meio a tempestades tropicais, já morei em sotãos e porões de famílias que me receberam, passei temporadas dormindo em lugares muito rústicos e em alguns momentos regiões violentas, onde o terrorismo, o crime e até guerras civis estavam ganhando força. E advinha só? Eu descobri que estava onde deveria estar e sempre amei essa vida.

Eu estava vivendo nos Estados Unidos quando conheci minha esposa Ada Elisa Sudre; numa das viagens para ensinar sobre missões eu visitei Campo Grande e lá estava ela! Linda, solteira e apaixonada por esta vida de ajudar pessoas. Meses mais tarde servimos juntos na África e tudo nos dizia que nossa vida de casados seria muito parecida com nossa vida de solteiros: rodando o mundo e vivendo a grande e louca aventura.

Até que no ano passado, quando ela me contou da gravidez, naquele mesmo segundo eu sabia que minha vida iria mudar, mas eu mal poderia imaginar o quanto. A paternidade já era sonhada há muitos anos, assim como o desejo – que ainda tenho – de adotar; mesmo assim tudo muda no momento em que nós pais seguramos nossos bebês nos braços pela primeira vez. Naquele momento qualquer alma masculina minimamente sadia sente a beleza e a resposabilidade de cuidar, amar e proteger.

Júlia no aeroporto com o papai para mais uma viagem missionária. (Foto: Arquivo Pessoal)
Júlia no aeroporto com o papai para mais uma viagem missionária. (Foto: Arquivo Pessoal)

Antes da Júlia nascer, minha esposa Ada e eu tínhamos em mente os desafios triviais de todos os pais: cuidar da saúde durante a gravidez, preparar um canto da casa para a chegada do bebê, fraldas, fraldas e mais fraldas e inevitavelmente dinheiro também.

Foi nesse momento em que me vi diante da grande guinada que minha vida daria. Como eu poderia preparar um mundo se naquele momento, aos 40 anos de idade eu praticamente não tinha residência fixa e apesar de passaportes repletos de carimbos eu nem mesmo possuía a CNH.

A preparação para receber a Júlia me fez pensar mais seriamente em ter e ser uma casa pra ela. Era hora de escolher um lugar pra chamar de lar e limitar, por um bom tempo o alcance da missão. De Los Angeles para Campo Grande há uma imensa distância cultural, que vai muito além dos milhares de quilômetros que separam essas duas cidades, mesmo assim eu não tive medo, e apesar de muita dificuldade pra me adaptar eu venho construindo uma nova vida e um novo modelo de missão, nunca em minha vida eu trabalhei tanto de maneira local.

Tem sido uma lição muito interessante sobre quanto nós pais naturalmente renunciamos à tantas coisas que até então eram as mais importantes para nós, ao passo que à cada dia minha filha me ensina como ser um homem melhor e ainda mais centrado, porque no final da história eu apenas recebi uma nova missão: ser pai, e essa tem sido a minha grande aventura da vida.

Ada e eu nos mantivemos na estrada fazendo missão em vários Estados brasileiros até o sexto ou sétimo mês da gravidez. Me lembro de uma viagem de ônibus quando a barriga já estava enorme... Foram 8 horas sob o sol do interior de Rondônia, sem ar condicionado. Ao mesmo tempo que me preocupava eu me orgulhava muito de minha família e de minhas escolhas!

Júlia ainda não completou seu primeiro ano de vida, mas já acumula boas horas de vôo, já viajou também de carro e de ônibus e o que posso dizer até aqui é que ela nasceu pra isso – risos!

Recentemente eu fiz a primeira expedição internacional deixando minha bebê em casa, e posso afirmar que o preço emocional a se pagar é extremamente alto. Apesar de toda tecnologia de comunição, nada substitui o toque, o cheirinho dela e as risadas que damos juntos. Eu agora saio pelo portão pensando em voltar e sinto que tanto o campo quanto a minha família me têm de maneira diferente. Centrado na paternidade!

A primeira coisa que me vem a cabeça é, que a despeito dela crescer dentro da missão, a escolha sempre será dela. Como pai eu quero respeitar todas as escolhas que minha filha fizer como a pessoa que ela é. As decisões sobre profissão, vocação e crença serão dela! Eu luto pelos direitos das pessoas e acredito que isso terá um bom reflexo em minha paternidade.

Júlia terá educação em 2 ou 3 idiomas além do português, viverá próxima da missão por bons anos e estou seguro que todos nós precisaremos aprender ainda mais sobre flexibilidade e disciplina, por mais que Campo Grande seja a nossa casa por muitos anos ainda. Ser missionário é lidar quase que diariamente com novos planos e projetos.

E se um dia Júlia escolha caminho diferente? Serei para Júlia a referência primordial de cárater e disciplina. Cabe a mim educar apresentar bons valores e dar espaço e oportunidade para que ela se desenvolva como a pessoa única e especial que ela é. Estou seguro que se ela tiver caráter e valores bem definidos seguirá seu caminho natural, seja como artista, cientista ou pessoa política. Meu papel é oferecer segurança em meio a uma sociedade corrompida e violenta e ensinar as bases da educação e do altruísmo num momento que a humanidade se vê mostra tão hedonista.

Sonho como um novo momento pra juventude globalizada, que as vezes se mostra tão inconstante, imediatista, insensível e ingrata". 

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