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Comportamento

Quase cega pela toxoplasmose, concursada não se faz de vítima, pelo contrário

Paula Maciulevicius | 26/04/2015 08:28
Ana Carolina Asato Camargo, tem 29 anos, nasceu com toxoplasmose e algumas limitações que não significam incapacidade. (Foto: Fernando Antunes)
Ana Carolina Asato Camargo, tem 29 anos, nasceu com toxoplasmose e algumas limitações que não significam incapacidade. (Foto: Fernando Antunes)

Dia desses uma mensagem chega à redação pelo e-mail. “Deficiente, eu?” A autora do recado se identifica como Ana Carolina, apesar dos apelidos carinhoso, Carol, Caru e até “Gorda”, mas sem necessariamente se referir à sua forma física. Deficiente visual, Ana Carolina Asato Camargo, tem 29 anos, nasceu com toxoplasmose e algumas limitações que não significam incapacidade. Do olho esquerdo, ela tem o que denominam visão subnormal, enxergando 30% e do direito, cegueira clínica, com 10% de visão.

O texto descreve Ana Carolina desde a infância, o bullying na escola, até o fato de se tornar concursada. Analista Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado há 2 anos ela não se faz de vítima, muito pelo contrário. Colocada como protagonista na sua própria história pelos pais desde que nasceu, Carol deu continuidade à essa postura de nunca se por para baixo.

Como um desabafo, ela resolveu descrever em linhas que não é por ser cega, deficiente ou portadora de necessidades especiais que ela é diferente. A motivação veio depois de saber que um conhecido que havia passado num concurso hoje dizia aos quatro cantos que “Deus iria devolver tudo o que havia tirado”.

Num desabafo, Carol escreve que deficiência não é sinônimo de 'coitado'. (Foto: Fernando Antunes)
Num desabafo, Carol escreve que deficiência não é sinônimo de 'coitado'. (Foto: Fernando Antunes)

“Eu fiquei indignada. Deus não tirou nada de ninguém. Ele devia agradecer porque teve a oportunidade de estudar, de ter nível superior. O preconceito não vem só de fora, quem é deficiente também se acha um coitado e eu achei um absurdo. Pensei ‘vou mandar o e-mail’, já vi falar de gordo, quem saiu do armário, mas nunca tinha visto a questão da deficiência”.

Pois bem, fui até a casa de Ana Carolina ouvir sua história. À primeira vista não se percebe a deficiência, a não ser pelo olho direito. A funcionária pública tem ‘nistagma’, oscilações repetidas nos olhos, o que significa que ela não tem controle sobre ele, que treme involuntariamente e a retina pende para a direita.

Nascida em Porto Seguro, na Bahia, os exames durante o pré-natal, à época, em 1985, não apontaram qualquer problema na gestação da mãe de Carol. “Não tinha os recursos, então não detectaram toxoplasmose na minha mãe. Ela entrou em trabalho de parto, eu nasci de parto normal num consultório médico e a médica disse que eu não ia vingar”

Com os olhos fechados e fraquinha, Carol foi levada pelo pai, até a cidade maior mais próxima. Sem dinheiro e nem carro, parte do trecho foi feito no colo do pai, à pé. De família católica, ele foi fazendo promessa para Santa Luzia, protetora dos olhos, até que um taxista passou e deu carona sem nada cobrar. “E eu nasci no dia de Santa Luzia, 13 de dezembro”, completa Carol.

Os médicos, no decorrer dos anos, só diziam não saber onde a visão dela iria chegar. “Disseram que eu não ia fazer faculdade. De longe, eu não enxergo, vejo você como um borrão”, explica.

Ana Carolina, quem os médicos disseram que nem sequer faria faculdade, hoje é analista judiciária. (Foto: Fernando Antunes)
Ana Carolina, quem os médicos disseram que nem sequer faria faculdade, hoje é analista judiciária. (Foto: Fernando Antunes)

Numa educação primorosa, como qualifica Carol, ela recebeu dos pais o suporte para que se virasse sozinha quando adulta. “Fiz faculdade, prestei concurso público... Quis escrever porque quantas pessoas não passam por isso?” questiona.

“Claro que tem os que inspiram mais cuidados, mas me irrita isso: quem se vê como pobre coitado”, desabafa.

A única limitação de Carol e não poder dirigir. “Vivo de carona, pego táxi, ônibus na época da faculdade. Vou pra balada com meus amigos, eles me pegam, me deixam aqui”, descreve.

Na infância ela sempre foi péssima em matemática e por conta disso foi parar no Kumon. “Minha família e eu fomos nos adaptando às minhas dificuldades”, conta.

Há dois anos, ela ingressou na carreira pública. Prestou o concurso para analista judiciário depois de estudar por um ano todinho. Logo que se formou, viveu 12 meses de desespero sem conseguir encontrar emprego. “Tem as cotas para deficientes nas empresas, mas não oferecem emprego para quem teve condição de ter nível superior. Como se o deficiente não fosse capaz de se qualificar”, afirma.

A prova é a mesma para os demais candidatos, com a mesma nota de corte e o que muda é apenas a concorrência, que diminui.

Hoje, como adulta, ela diz que vive um preconceito mais ‘velado’. “Antes você é vesga, zambeta, depois isso vem numa forma velada. Eu sou mais lenta no meu trabalho, porque eu demoro para focar”, explica. “Mas quem trabalha comigo, entende”, completa.

Carol passa a tarde toda olhando para a tela do computador numa proximidade muito grande para focar e enxergar as letras.

“Eu sou bem resolvida com a deficiência. Você olha para mim e não vê, só se prestar muita atenção. Mas eu, sendo deficiente, consigo enxergar as atitudes das pessoas com as outras deficiências. Isso é um desabafo meu, ninguém é coitado. Há sim, outras pessoas que precisam de mais cuidados.

Nós somos em muitos, a gente só não aparece, porque o Governo não mostra. É preciso educação de qualidade e adaptada. A gente tem que entender que limitação não é sinal de incapacidade”, resume.

"Portadores de deficiência, seja qual for ela, não precisam ser tratados como incapacitados, nem viver sob o estigma do "coitadismo". Não somos coitados. Somos pessoas normais que, em alguns casos, inspiram cuidados especiais. Não precisamos e nem gostamos de olhares melancólicos e cochichos sobre nossa condição. Precisamos de respeito e da compreensão de que limitação não é sinônimo de incapacidade.

E, pra você que tem uma empresa e não contrata portadores de necessidades especiais, por achar que não daremos conta do trabalho; pra você que faz chacota e inventa apelidos ofensivos; pra você que faz perguntas desnecessárias; pra você que olha com repúdio pra alguém porque lhe falta uma parte do corpo ou qualquer coisa que o valha, eu deixo uma pergunta: olhe pra dentro de si e questione: sua falta de respeito e educação não seriam uma deficiência?" (texto enviado por Ana Carolina)

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