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Comportamento

Revolta ainda dói pela morte de Marcela, um assassinato que ninguém investigou

Paula Maciulevicius | 29/11/2016 07:34
Marcela foi uma das travestis mortas que não tiveram o assassinato investigado. (Foto: Arquivo/Marcos Ermínio)
Marcela foi uma das travestis mortas que não tiveram o assassinato investigado. (Foto: Arquivo/Marcos Ermínio)

Marcela tinha tudo para ser uma liderança no meio LGBT, mas os disparos que lhe atingiram na saída do Hospital Universitário, nos anos 2000, puseram fim a uma história que estava sendo escrita. Travesti, militante e acima de tudo, ser humano, o caso não foi investigado, não responsabilizando e penalizando ninguém pelo crime. O que ficou de Marcela foi a força e a alegria de quem falava alto, fazia "bafão" e a revolta de ver um futuro como de tantas outras, interrompido. 

Quem fala dela é o professor Paulo César Duarte Paes, pós-doutor em Serviço Social que teve um ano de convívio com a travesti, antes e depois dos tiros, quando ela foi voluntária e depois contratada pelo Gas (Grupo de Apoio, Solidariedade, Ação e Prevenção à AIDS), onde estava ancorado o projeto "Tá legal", de assistência e construção de políticas públicas da redução de anos na fronteira. 

"Ela veio trabalhar na equipe, era usuária e depois de capacitada, ia a campo para atender outros usuários. Meu contato com ela foi questão de um ano", conta Paulo. Os 12 meses foram impactantes pela forma com que Marcela se dedicava e depois, mais ainda por ela ter sido vítima do descaso e preconceito. 

Marcela estava saindo do hospital onde fazia tratamento quando foi baleada.
Marcela estava saindo do hospital onde fazia tratamento quando foi baleada.

"A última vez que encontrei com ela foi num congresso em Recife. Ela já estava muito mal", conta Paulo. A família de Marcela, como tantas outras, não aceitavam a orientação sexual da travesti. "À época ela queria restabelecer contato e pediu para que eu ligasse e falasse. Senão me engano falei direto com a mãe dela, que veio e se encontrou com Marcela depois do tiro", recorda o professor.

Marcela Aguiar estava saindo do Hospital Dia, aos fundos do Universitário, onde fazia tratamento. A travesti era soropositiva. "Ela estava esperando ônibus, passou um carro e atirou. Não dá para deduzir se era alguém que atirou na Marcela ou na travesti, que é uma coisa muito comum", explica. Pelo menos foi essa a história contada. Paulo recorda que até chegou a ser aberta uma investigação, mas que não foi para frente. 

"Trabalho há anos com os direitos humanos na fronteira e uma das linhas do trabalho era o protagonismo das LGBT's. As pessoas matavam sem saber. É LGBT? Vai lá e mata e há sempre a imunidade", justifica o professor. 

Como Marcela não foi a óbito no momento dos tiros, aí que o caso não foi para frente. "Ela não foi assassinada ali, mas baleada e morreu por conta dessa bala", ressalta. A bala ficou alojada e deixou em Marcela um problema de locomoção, que cerca de dois anos depois, causaram sua morte. 

"Mas é aquela coisa: 'travesti levou um tiro? Ah, é coisa de travesti'", reproduz o professor. 

"Mas é aquela coisa: 'travesti levou um tiro? Ah, é coisa de travesti'", reproduz o professor.
"Mas é aquela coisa: 'travesti levou um tiro? Ah, é coisa de travesti'", reproduz o professor.

Marcela era parte de um movimento surgido na Europa e que depois, conforme o professor, se tornou política da ONU, na qual como protagonista, Marcela trabalhava impedindo o alastramento da epidemia da AIDS.

"Ela se prostituía, como grande parte das travestis, onde a condição é essa: perda de vínculo familiar, não estuda e para sobreviver...", deixa as palavras no ar.

À memória de Marcela, o professor postou no Facebook como teria sido a vida dela, caso a travesti vivesse em Cuba. Num contexto geral, Paulo transportou o cenário LGBT para o país que perdeu seu líder, Fidel Castro, no último final de semana e onde ele morou por seis meses. 

"Se lá em Cuba uma travesti sofresse um tiro, ia ser uma comoção. Iam achar o culpado, porque aconteceu. Lá também existe o preconceito, o cubano é muito conservador, mas eles não são violentos como aqui. Não se mata. E eu trabalho com isso a vida inteira", compara. 

Quando não matam, violentam e agridem física e verbalmente os LGBT's. "Lá eu morei num bairro tradicional das travestis. Tem preconceito sim, mas você sabe que ninguém vai ser morto e se for, vai ter julgamento, a polícia vai apurar. Já no Brasil, não", desabafa Paulo.

E o que ficou de Marcela? No professor que a acolheu, lágrimas de saudade e revolta. "Ficou uma pessoa muito alegre, divertida que falava alto, dava bafão nos lugares com esse jeito dela e que trabalhou e gostava muito do trabalho", descreve Paulo. 

As décadas de trabalho com quem está invisível na sociedade ensinaram a ele que quando essas vítimas começam a trabalhar por elas e seus pares, apresentam melhora na autoestima. "Ela tinha uma gratidão muito grande por ter conseguido trabalhar em prol das pessoas que ela gostava, pelos amigos que amava", explica. 

Marcela foi uma das travestis de uma série de casos que até hoje não foram desvendados. E para Paulo, representa uma luta. "Ela nasceu de uma luta e foi morta pelo preconceito. Para mim, significa essa força do protagonismo das pessoas que não têm seu direito humano garantido, mas lutam por ele e quando se descobre a luta, neste momento eles se engrandecem", define o professor.

Muitos das travestis que passaram pelo projeto morreram. As que sobreviveram, passaram por torturas e foram presas. "Pessoas que poderiam ser liderança, mas foram morrendo, ou presos, torturados e sofreram outras formas de violência, uma coisa terrível", chora Paulo.

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