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Comportamento

Sá ganhou fama entalhando portas de famílias ricas, mas o álcool venceu a arte

Ele diz que ganhava, por obra, cerca de R$ 120 mil, mas gastou tudo e hoje vive em barracão emprestado

Thaís Pimenta | 05/05/2018 07:05
Faz quase 8 anos que Sérgio de Sá mora em uma espécie de barracão no Monte Castelo. (Foto: Roberto Higa)
Faz quase 8 anos que Sérgio de Sá mora em uma espécie de barracão no Monte Castelo. (Foto: Roberto Higa)

Sérgio de Sá já morou em hotel 5 estrelas, no meio do mato, em casarão, em fazenda, dormiu na praia, alguns dias na delegacia, e hoje vive em uma espécie de barraco no bairro Monte Castelo, cedido pelos amigos, local onde está há quase oito anos.

O artesão tem esculturas, quadros e placas espalhadas pela cidade. Virou artista famoso por aqui ao entalhar portas enormes e pesadas para casas imponentes de empresários poderosos. Como sempre teve espírito boêmio, ele mesmo admite que "acabou torrando tudo que conquistou". Lembra que chegou a cobrar por suas obras em madeira o que hoje seria cerca de R$ 120 mil, mas nada sobrou do tempo de dinheiro farto.

Sobrevivendo com um salário mínimo que recebe da Assistência Social, o estilo de vida, claramente, mudou da água pro vinho. O que ficou foi a história, os arrependimentos e a fé que na arte do entalhe ele vai reencontrar um caminho interrompido. 

Hoje. Sérgio luta. No fim de um tratamento contra o câncer, teve de encarar também uma cirrose causada por conta dos três anos entregues aos bares e aos episódios agressivos da dependência química, como quando ingeria etanol para matar a vontade de bebida.

Enquanto entalha mais uma obra, o detalhe fica na cruz pendurada no peito. (Foto: Roberto Higa)
Enquanto entalha mais uma obra, o detalhe fica na cruz pendurada no peito. (Foto: Roberto Higa)

Vê-lo em pé, brigando para se reerguer, é emocionante. "Eu estou em processo de me redescobrir, é como se eu fosse uma fênix, renascendo a cada dia que venço o alcoolismo e volto, pouco a pouco, a praticar o exercício que sempre foi mais do que fonte de renda, foi amor, o entalhe", diz.

Assumidamente espírita, ele acha que só não partiu porque ainda não fez o que devia por aqui. Devoto de Nossa Senhora, é à ela que recorre como único apoio ainda presente. "Num desses dias que o vício me cobrou, eu vendi toda as minhas ferramentas para comprar cachaça. Então, não consegui produzir aqui em casa sem ferramentas e sem dinheiro, então rezei à ela e logo depois encontrei algumas ferramentas abandonadas", garante.

Por conta do passado do qual não se orgulha, o homem com traços que remetem a Raul Seixas diz que passa a assinar seus trabalhos na nova fase de vida como D' Sá. "O Sérgio foi uma pessoa que aprontou muito, fez mal a si, arranjou encrenca por causa dos vícios, o D'Sá mantem meu sobrenome preferido, vindo da minha família do Rio de Janeiro e inaugura meu recomeço".

Solitário por opção, afirma, D'Sá confessa que abandonou os dois filhos para o ''planeta terra'', mas teve a sorte de nunca ter sido abandonado pelo seu talento. Mesmo distante do ofício, bastou pôr a mão na madeira, que todo potencial voltou à tona. Os dois quadros no qual está trabalhando são tão bonitos quanto os que lhe rendiam muitos cruzeiros. 

Sérgio de Sá se tornou mais religioso depois dos efeitos severos da bebida. (foto: Roberto Higa)
Sérgio de Sá se tornou mais religioso depois dos efeitos severos da bebida. (foto: Roberto Higa)

O artesão conta que sempre desenhou bem, mas descobriu o dom quando entrou no curso de marcenaria, oferecido pelo Senai no colégio interno de Juiz de Fora (MG), onde estudou. Na época, ele tinha apenas 14 anos. "Daí eu me enfiei nessa área e descobri que dava pra desenhar na madeira. Nunca mais parei".

Sérgio foi hippie, daqueles que curtiu intensamente os anos de revolução, ouvindo Beatles, Rolling Stones, usando drogas e sempre entalhando quadros de madeira. "Eu queria mesmo ter sido um revolucionário comunista, mas como não tinha potencial para isso, virei hippie, para ser contra o sistema", brinca.

Foi um empresário carioca que chamou o artesão para fazer o primeiro importante trabalho de sua vida, em uma loja de alimentos em um bairro de bacana do Rio de Janeiro.

As rosas do quadro são para Iemanjá. (Foto: Roberto Higa)
As rosas do quadro são para Iemanjá. (Foto: Roberto Higa)

Veio parar em Mato Grosso do Sul a convite de um fazendeiro "milionário", o descendente de gregos Nicolao Zarbes Filho, para fazer trabalhos em Sidrolândia. Aqui, conheceu a galera de Bonito e ficou para morar. Até hoje, o município tem obras entalhadas por ele, de figuras que claramente remetem ao bioma da região, como peixes e araras, além de arte sacra. "Ali eu lutei muito, sempre em contato com o pessoal da cultura, para que se criasse uma escola de artes, de nada adiantou".

Ele conta que o prefeito da época se incomodou com o trabalho religioso que Sérgio fazia nas casas dos grandes fazendeiros que lhe pagavam por obras dos santos católicos. "Fui chamado de idólatra pelo prefeito, pra você ter uma noção. Ele chegou a dizer também que madeira servia pra fazer fogueira e não pra ser obra de arte". Isso fez com que o artesão aceitasse o convite do empresário Ivan Paes Barbosa para vir pra Campo Grande, aos 24 anos e, entre idas e vindas, a cidade é o endereço de mais uma tentativa de vida nova. 

Da vida e do futuro, D'Sá espera conseguir voltar a trabalhar porque, por enquanto, tem os entalhes apenas como terapia. Sóbrio há três meses, manter-se dessa maneira é a principal vontade hoje. "Quero também ter mais fé no universo supremo", completa.

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As ferramentas foram presente de Nossa Senhora Aparecida, como ele mesmo diz. (Foto: Roberto Higa)
As ferramentas foram presente de Nossa Senhora Aparecida, como ele mesmo diz. (Foto: Roberto Higa)
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