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Comportamento

Sete semanas após morte, missa celebra vida da "batian" que sobreviveu à guerra

Paula Maciulevicius | 13/02/2017 07:10
Fotos contam um pouquinho de quem foi batian Tsuru. (Fotos: Paula Maciulevicius)
Fotos contam um pouquinho de quem foi batian Tsuru. (Fotos: Paula Maciulevicius)

Entre tapete, bordados e o crochê, está a foto do sorriso de uma senhorinha com nome de pássaro. Dona Tsuru Shinzato viveu 100 anos e partiu logo depois de completar o centenário. Hoje, 49 dias - ou sete semanas - depois, é hora da família e dos amigos se juntarem numa missa para homenageá-la. 

É a primeira vez que o Lado B acompanha a celebração que 'abrasileirada', ganhou até participação do padre amigo da família. Cheia de significados, o rito conta a bela história de sua protagonista. Dona Tsuru só tinha aparência de uma senhorinha frágil, mas por dentro, tinha a força de uma mãe que enterrou as duas filhas mais velhas com as próprias mãos, em meio à guerra, e ainda conseguiu ter esperança para constituir uma nova família.

Nascida no que hoje é a Ilha de Okinawa, no Japão, a "batian" - avó em japonês - , foi mãe de seis filhos, avó de nove e bisavó de quatro. Se casou aos 21 anos com um soldado do exército japonês, viveu um ano de felicidade, viu nascer a primeira filha e depois se despediu do marido que foi para a guerra, voltando após cinco anos.

Senhorinha morreu depois de fazer 100 anos.
Senhorinha morreu depois de fazer 100 anos.

Do reencontro, nasceu outra menina e quando a cidade onde moravam foi invadida por norte-americanos, o marido ficou como prisioneiro e as três andaram de volta à Okinawa, ora caminhando pelos próprios pés, ora tomando trem.

É o neto, Fábio Shinzato, de 36 anos, quem lê um breve histórico da batian. "Uma pequena mulher, aparentemente frágil, mas com a coragem de um gigante e que no decorrer da vida, formou duas famílias com o mesmo marido", explica aos convidados.

O caminho até Okinawa era tomado de tristeza. Dias de fome e de frio, quando as vestimentas eram sacos de estopa. "E ela contava sorrindo, dizendo que tudo isso era normal, pois ao seu redor todos eram iguais, viviam a mesma situação", descreve o neto. 

Nos 12 meses que durou a peregrinação, o tempo e a ausência de tudo atingia os mais debilitados. As meninas foram escolhidas e Tsuru viu as filhas definharem. "Ela as viu partir e enterrou com as próprias mãos", conta Fábio. A mais velha tinha 9 anos e a mais nova, 3 meses. Antes que os corpos entrassem em decomposição, as mesmas mãos que enterraram, retiraram as meninas para cremar o corpo. Tsuru chegou até Okinawa com dois 'tesouros', as caixinhas com as cinzas das filhas. 

Três anos depois, o casal se reencontrou e construiu sua segunda vida e família. Deles nasceram três homens e uma mulher e no pós-guerra, a família veio para o Brasil, em 1958, chegando pelo porto de Santos.

Ela entre filho e nora.
Ela entre filho e nora.
Ao lado do marido, viveu a 2ª Guerra Mundial.
Ao lado do marido, viveu a 2ª Guerra Mundial.
Amigas da dança também fizeram homenagem em missa da 7ª semana.
Amigas da dança também fizeram homenagem em missa da 7ª semana.

"E chegaram com o sonho de uma vida tranquila e feliz. Nós agradecemos por toda convivência e tudo que aprendemos. O olhar frágil era apenas na aparência, a batian era forte e determinada, com a coragem de uma guerreira que sobreviveu e lutou pelo sonho de ter uma família feliz e unida", encerra o neto. 

Nos anos 2000, depois que a batian ficou viúva, encontrou alento na dança "hamachidori". Em meio às homenagens da missa, as colegas da academia onde ela frequentou ao longo de quase 10 anos, se apresentaram.

As fotos servem para lembrar da batian sorrindo e da família que formou, a comida é um oferecimento dos Shinzato aos convidados que ainda levam uma lembrança ao final do festejo. A missa marca a ida, de vez, de quem partiu e permite aos familiares que mexam, por exemplo, nos pertences da batian. 

Nora de Tsuru, Clarice Kyoko Miyashiro Shinzato, de 66 anos, explica que a missa é mais como um momento de oração. "Ela morreu no dia 30 de dezembro, então quando faz a missa de sétimo dia, faz uma homenagem com a tabuinha do nome dela e quando chega a sétima semana, a gente queima e fica a que foi definitiva", descreve. 

No altar, estavam as tábuas com os nomes dela, do marido e das filhas que se foram ainda no Japão. É ali que se forma uma fila ao final da celebração, para que os convidados acendam os incensos. No redor, ficam as comidas que batian mais gostava. 

Neto resumiu toda história da protagonista da família Shinzato.
Neto resumiu toda história da protagonista da família Shinzato.
Filho mais velho foi o primeiro a acender incenso no altar.
Filho mais velho foi o primeiro a acender incenso no altar.

O clima era de felicidade, mas também pautado por lágrimas de saudade. Saeko Gushiken, professora da dancinha que Tsuru fazia, não conteve a emoção. "Ela tinha 85 anos quando entrou na academia. Fiquei emocionada, ela me dizia que quando não conseguia dormir, sempre dançava à noite. Tenho saudades, ela foi igual a uma mãe", fala a senhorinha de 78 anos.

Muito ativa, a batian morava com o filho mais velho, Chitochi e foi assim que participou ativamente da criação dos netos, que nos últimos tempos, tinham de dizer a ela quem eram aqueles rostinhos. Empresária, Aline Shinzato, de 31 anos, é uma das netas que a viam diariamente.

"Sempre sorridente, fazia caminhadas em volta da casa, fazia a sopinha dela. Encontrava ela todo dia aqui neste corredor, cumprimentava e ia trabalhar", recorda. No ano passado, a batian foi perdendo um pouco da lucidez e mesmo que não reconhecesse, todo mundo fazia questão de ir até ela. 

"E ela segurava a nossa mão, para a gente não ir embora. Era bem carinhosa", resume a neta. 

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Familiares e amigos eram os convidados da celebração.
Familiares e amigos eram os convidados da celebração.
Ao redor do altar, as comidas que a batian mais gostava.
Ao redor do altar, as comidas que a batian mais gostava.
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