Além da paz, o branco nas festas de Ano-Novo tem outros significados
Práticas celebradas nas praias e ruas também guardam fundamentos religiosos, explicam terreiros

Vestir branco na virada do ano, pular ondas e fazer pedidos ao mar se tornou um dos rituais mais populares do Réveillon brasileiro. O que poucos se perguntam é de onde vêm esses gestos e qual o significado espiritual que carregam. Para líderes de religiões de matriz afro-brasileira, a tradição amplamente reproduzida nas festas de Ano-Novo revela uma relação ambígua do país com práticas culturais que são celebradas em datas específicas, mas frequentemente ignoradas, estigmatizadas ou alvo de intolerância ao longo do ano.
RESUMO
Nossa ferramenta de IA resume a notícia para você!
A tradição de vestir branco na virada do ano tem origem nas religiões de matriz africana, especialmente na Umbanda e no Candomblé. A cor representa início, criação e energia positiva, tendo surgido do uso de roupas feitas com sacos de trigo por escravos. Os rituais envolvendo o mar, como pular ondas e jogar flores, são práticas ligadas a Iemanjá, Orixá das águas e da proteção. Líderes religiosos alertam que, embora popularizadas, essas tradições carregam significados espirituais profundos e merecem respeito, mesmo quando praticadas fora do contexto religioso original.
“O Brasil gosta do que vem das religiões afro-brasileiras, desde que não tenha rosto, nome ou axé. No dia 31 de dezembro todo mundo veste branco, pula onda, faz pedido ao mar. Mas durante o ano, a mesma fé é chamada de macumba, os terreiros são ignorados ou atacados. Isso não é contradição, é desigualdade”, critica Pedro Gaeta, sacerdote do Axé Nascente, terreiro de Candomblé situado em Campo Grande.
A fala do líder religioso expõe uma contradição no consumo cultural brasileiro. Milhões de pessoas incorporam rituais da Umbanda e do Candomblé no Réveillon, mas desconhecem a história e o significado por trás dessas práticas. É o que também aponta o sacerdote Marcos Rodrigues, da Casa Pai Guiné, ao explicar que o branco, símbolo amplamente adotado na virada do ano, não se resume à ideia de paz.
“Ele representa o início, a criação, o princípio de tudo. É energia positiva, respeito à fé e à ancestralidade. O branco está presente em quase todos os cultos, principalmente nos rituais fúnebres e de limpeza espiritual. Não é apenas roupa, é consciência”, discorre.

Segundo Marcos, a tradição tem origem em períodos de extrema dificuldade. “Os escravos usavam roupas brancas feitas de sacos de trigo, era o que tinham. Era humildade, era o princípio de tudo. Hoje, muita gente veste branco pedindo paz ou equilíbrio sem saber de onde veio. O hábito perdeu o sentido espiritual e se transformou em moda”.
Nos rituais religiosos, o uso da cor envolve regras e processos de purificação. “Quando se vai ao mar ou se faz qualquer ritual, existe um preceito. Tem que se resguardar, sem carne vermelha, sem bebida alcoólica. É momento de concentração, oração, respeito. Muitas pessoas fazem tudo sem saber. Pula ondas, joga flores, mas não entende o sentido espiritual. Isso é diferente do que se vê na festa de Ano-Novo nas praias”.
Marcos também detalha o significado do branco em diferentes contextos religiosos. “Ele representa Oxalá, o senhor da criação. Representa pureza, equilíbrio e proteção. No dia a dia religioso, usamos para trabalhar com os guias espirituais, para acolher energias positivas e afastar negativas. É a soma de todas as cores, é a energia que conecta tudo”.
Gaeta complementa a reflexão ao afirmar que o símbolo vai além do uso pontual. “O branco vai além da ideia de paz. É pureza espiritual, conexão com os ancestrais, equilíbrio. Todos os guias espirituais trabalham sob essa energia, independentemente da linha. Quando usado só na virada, o significado se perde”.
O mar, elemento central nos rituais de Réveillon, também carrega história e devoção nas religiões de matriz africana. “O mar é Iemanjá, Orixá das águas, da maternidade, da proteção e do acolhimento. Jogar flores ou pular ondas não é superstição, é diálogo com a divindade”, explica Gaeta. Cada onda, segundo ele, simboliza um obstáculo vencido ou um pedido feito. “É um renascimento espiritual, a passagem de um ciclo para outro. Historicamente, essas oferendas fazem parte do calendário ritual dos terreiros, especialmente nas regiões litorâneas. A popularização como tradição de Ano-Novo veio depois, nas grandes cidades”.
Marcos reforça a necessidade de consciência ao praticar esses rituais. “Não é só vestir branco ou pular ondas. Cada gesto tem fundamento. A fé é cuidado diário com os Orixás, com os ancestrais, com a comunidade. Se você entende isso, o ritual se torna experiência espiritual. Se não, é só moda, consumo de símbolo”.
Para Gaeta, o problema está na forma como essas práticas são apropriadas. “O problema é a hipocrisia religiosa. As pessoas roubam as práticas dos macumbeiros no Ano Novo, mas rejeitam a religião o resto do ano. Precisamos de respeito e informação, para que essas práticas sejam vividas com consciência e não apenas como diversão de Réveillon. Por trás do branco, do mar e das flores, existe fé, história e ancestralidade”.
Marcos conclui destacando a importância de reconhecer a origem dessas tradições. “Quando a tradição é respeitada, todo mundo ganha. Vestir branco, jogar flores ou pular ondas não precisa deixar de ser divertido, mas deve ser feito com conhecimento, para que o gesto tenha significado e não apenas aparência”.
Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial, Facebook e Twitter. Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui).
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para entrar na lista VIP do Campo Grande News.

