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Reportagens Especiais

Apagada da história oficial, fé mantém em pé contribuição dos negros à Capital

Enquanto festas e terços atravessam gerações, material que lembra o passado é preservado de forma rudimentar

Por Inara Silva | 26/08/2025 07:28
Apagada da história oficial, fé mantém em pé contribuição dos negros à Capital
Apagada da história oficial, fé mantém em pé contribuição dos negros à Capital
Fundadora da Comunidade São João Batista, Maria Rosa Anunciação com lenço na cabeça. (foto: Paulo Francis))

Mesmo relegada da história oficial, a memória do povo negro em Campo Grande resiste por meio da fé, das tradições coletivas e da ligação estreita com a terra. As comunidades São Benedito, São João Batista e Chácara Buriti mantêm vivo o legado deixado pelos ancestrais, apesar do apagamento de suas culturas materiais.

RESUMO

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A memória do povo negro em Campo Grande persiste através da fé e das tradições, apesar do apagamento histórico. As comunidades São Benedito, São João Batista e Chácara Buriti mantêm vivo o legado ancestral, mesmo enfrentando desafios como o abandono de patrimônios históricos. A Igreja de São Benedito, construída por Tia Eva em 1919, encontra-se interditada por risco de desabamento. Enquanto isso, a Comunidade São João Batista preserva seus rituais religiosos e desenvolve ações sociais, e a Chácara Buriti, reconhecida como quilombo, mantém forte conexão com a terra através da agricultura familiar.

Na área urbana, descendentes de Tia Eva se desdobram para realizar anualmente a festa de São Benedito, promessa da fundadora Eva Maria de Jesus, mantida através das gerações.

No bairro Pioneiros, a família Anunciação cultiva o tradicional terço de São João Batista e São Pedro nos meses de junho e oferece à comunidade ações de cidadania e combate ao racismo.

Já os que vivem na área rural, na Chácara Buriti, valorizam a relação com a terra e os saberes tradicionais por meio do trabalho na plantação.

Para o professor Lourival dos Santos, da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), o apagamento da história negra não é acidental, mas um processo histórico. Doutor em História Social, com ênfase em cultura e identidades negras, Santos afirma que a cidade invisibiliza a presença negra ao focar em outras narrativas, como a dos migrantes japoneses e árabes que também influenciam a cultura local.

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Ronaldo Jeferson da Silva em frente à Igreja de São Benedito (Foto: Paulo Francis)

Igreja interditada

No Jardim Seminário, a Comunidade São Benedito sente o reflexo da falta de atenção. A igrejinha erguida por Tia Eva foi tombada como patrimônio histórico em 2003, mas desde maio deste ano está interditada por risco de desabamento.

O madeiramento do teto está tomado por cupins, o que fez a viga mestra ceder e empurrar a fachada para frente. Já o busto de Tia Eva, em frente à igreja, sofre com a ação do tempo.

“A igrejinha é o coração da comunidade. Antes do tombamento, nós mesmos fazíamos reparos, porque sempre teve pedreiro e carpinteiro entre os moradores. Já trocamos janela, já fizemos reforma. Agora só o poder público pode mexer”, explica Ronaldo Jeferson da Silva, presidente da Associação dos Descendentes de Tia Eva e tetraneto da fundadora.

Enquanto aguardam o término da licitação da obra, as imagens sacras, incluindo a de São Benedito entalhada em madeira e que pertencia à fundadora, foram levadas para um depósito.

Ronaldo afirma que a ausência da igreja mexe com a comunidade, principalmente com os mais velhos. Dona Adair Jerônimo da Silva, de 90 anos, é bisneta de Tia Eva e guarda memórias de quando o local recebia fiéis de várias fazendas.

“Vinha gente de todo lado para a festa. Era mais animado, tinha baile, tinha mais católico também. Hoje, ver a igreja assim me deixa muito triste”, conta.

A idosa fazia parte do grupo que rezava o terço todas as sextas-feiras, prática suspensa pelo risco da estrutura.

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Igrejinha está interditada enquanto aguarda reforma (Foto: Paulo Francis)

A promessa de Tia Eva

A história da Comunidade São Benedito começou em 1905, quando Eva Maria de Jesus chegou à região, vinda de Mineiros (GO), trazendo consigo a imagem de São Benedito.

Em 1919, ela concluiu a obra da pequena igreja como cumprimento de promessa. A igrejinha se tornou o ponto de partida de uma tradição que atravessa gerações: a Festa de São Benedito, realizada anualmente na segunda semana de maio.

A celebração é mais que um evento religioso. São duas semanas de programação que inclui missas, bailes, terços, torneio de futebol, levantamento e descida de mastro, shows e mostra da cultura negra e quilombola.

“A cada ano a gente sente mais dificuldade de apoio do poder público, mesmo sendo parte do calendário cultural de Campo Grande”, lamenta Ronaldo Jeferson.

Além da festa anual, a comunidade realiza, em 11 de novembro, uma missa em homenagem à data de falecimento de Tia Eva, em 1926.

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Bisneta de Tia Eva, Adair Jerônimo da Silva, de 90 anos. (Foto: Paulo Francis)

A fé e a promessa

Outra tradição que se mantém é o terço da Comunidade São João Batista, no bairro Pioneiros, na Capital. Criada por Maria Rosa Anunciação, a comunidade nasceu de uma promessa feita em agradecimento à sobrevivência do filho prematuro, José Soares Magalhães.

Desde então, todo ano, nos dias 23 e 29 de junho, os moradores rezam o terço em homenagem a São João Batista e São Pedro, com ritos idênticos aos realizados pela matriarca.

Atualmente, quem mantém a tradição é Rosana Anunciação Franco, bisneta da fundadora e presidente da Associação das Famílias da Comunidade Negra São João Batista.

Rosana guarda com muito cuidado a relíquia de São João Batista Criança utilizada pela fundadora para a reza do terço. O material está bem desgastado pelo manuseio; por isso, ela evita deixá-lo em exposição no altar da associação, onde mantém imagens de santos, bandeiras e andores em homenagem aos santos juninos.

Segundo a presidente da associação, antes de Campo Grande, a bisavó morava em Coxim, no Norte do Estado. Ela se mudou para a Capital em 1945. Por isso, o espaço da associação hoje, no bairro Pioneiros, é uma área de comodato reconhecida como quilombo urbano pela Fundação Palmares.

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Imagem de São Benedito entalhado em madeira que pertencia à Tia Eva. (Foto: Paulo Francis)

Religiosidade que virou ação social

Além da parte religiosa, a associação atende 154 famílias com doação de alimentos e roupas, oferece projetos socioeducativos para 60 crianças e capacitação profissional. O projeto, segundo Rosana, é aberto a todos, não apenas para pessoas negras.

Segundo Rosana, é importante que as pessoas de fora participem das formações oferecidas pela comunidade, pois podem se tornar multiplicadores no combate ao racismo.

“Meu pai sonhava em deixar esse espaço para fortalecer as raízes da comunidade. Ele sofreu muito preconceito, chegou a perder clientes em sua fábrica de cimento e precisou contratar intermediários para vender no lugar dele. A associação é uma forma de resistir e de não deixar esquecer nossa história”, afirma Rosana.

Este ano, o terço não foi realizado por causa do luto pela morte da mãe de Rosana, Maridalva Delfina da Anunciação, ocorrida em junho, mas ela garante que em 2026 a tradição será retomada.

O espaço também já ofereceu aulas de dança afro, que deram origem ao grupo Heranças do Rei, mantido hoje pelo filho de Rosana, João Anunciação Franco. Estudante de Letras, recentemente, ele e a equipe conquistaram financiamento da Lei Paulo Gustavo e levaram as apresentações para 12 escolas públicas da cidade.

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Rosana Anunciação Franco, neta da fundadora da Comunidade São João Batista (Foto: Paulo Francis)

Buriti e o pertencimento

Na área rural, a Chácara Buriti mantém viva a ligação com a terra. Localizado a 40 km de Campo Grande, o território foi reconhecido como quilombo pela Fundação Palmares em 2005. Hoje, 56 famílias vivem na área, somando cerca de 200 moradores.

A comunidade nasceu no início do século XX, quando João Antônio da Silva e Lúcia Maria de Jesus Domingos se instalaram na região. Os primeiros anos foram marcados pela agricultura de subsistência e pela olaria, que durante décadas sustentou as famílias.

Atualmente, a economia local se diversificou com três agroindústrias de mel, mandioca e pães, além do cultivo de hortaliças vendidas em Campo Grande.

“Temos amor pelo lugar onde pisamos. É uma terra conquistada, cuidada pelos nossos antepassados, e isso nos dá sentimento de pertencimento”, afirma Lucinéia de Jesus Domingos Gabilão, bisneta dos fundadores e atual presidente da associação.

Mesmo com a modernização, os moradores preservam conhecimentos ancestrais, como a leitura da natureza para definir época de plantio e colheita, mas quase nada restou de objetos da época dos pioneiros. A olaria, que já foi a base da economia local, não existe mais.

Outra mudança ocorreu em relação às festividades. Segundo Lucinéia, antigamente a comunidade realizava a festa da colheita, com a dança da catira, que remetia às origens, mas o hábito deixou de ser praticado. Hoje, eles realizam feiras para a comercialização da produção.

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Projeto socioeducativo atende crianças da comunidade no Bairro Pioneiros (Foto: Paulo Francis)

Resistência pela fé

Para o professor Lourival dos Santos, as práticas religiosas são o fio condutor que mantém unidas as comunidades negras da Capital.

“A religiosidade é o cimento cultural desses povos. Mesmo que tenham perdido terras, mantêm um território simbólico pela fé e pela memória coletiva”, explica.

Ele lembra que os quilombolas que chegaram a Mato Grosso do Sul no início do século XX vieram de Minas Gerais e Goiás em busca de terras baratas.

“Eram ex-escravizados que compraram terras e vieram como proprietários, não apenas como mão de obra”, diz o professor.

No entanto, conforme o pesquisador, a elite branca, por dominar a escrita, se apropriou da documentação e do discurso histórico, relegando a oralidade,  forma de transmissão de memória das comunidades negras, a um segundo plano.

Territorialidade e pertencimento

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João Anunciação criou o grupo de danças afro "Heranças do Rei". (Foto: Paulo Francis)

O professor Lourival dos Santos esclarece que o conceito de território para as comunidades quilombolas vai além do solo físico, manifestando-se também como um território cultural, que persiste mesmo que a comunidade tenha perdido sua terra original.

A Comunidade São João Batista, por exemplo, mesmo sem um território físico ancestral, mantém sua memória e tradição através de uma “reinvenção” cultural.

Para Santos, a memória coletiva é transmitida pelo trabalho, pelas festas e, principalmente, pela oralidade. Ele ressalta que a oralidade, a tradição e a ancestralidade são os três elementos que caracterizam uma comunidade tradicional. É por meio da palavra, passada de geração em geração, que as comunidades resistem e mantêm suas histórias.

Apagada da história oficial, fé mantém em pé contribuição dos negros à Capital
Relíquia de São João Batista Criança trazido pela fundadora Maria Rosa da Annunciação (Foto: Rosana Anunciação)