A era da recessão das amizades: por que estamos nos sentindo cada vez mais sós
Vivemos a era da hiperconexão — nunca estivemos tão acessíveis, tão disponíveis, tão online. E, paradoxalmente, nunca estivemos tão sós. Uma solidão silenciosa tem se espalhado pelas cidades, pelos grupos antes inseparáveis, pelos vínculos que antes pareciam indestrutíveis. Estamos vivendo o que muitos têm chamado de “a era da recessão das amizades”. Um tempo em que vínculos se dissolvem sem grandes explicações, contatos se reduzem a curtidas, e conexões profundas são cada vez mais raras.
Essa recessão não é apenas um sentimento vago. É um fenômeno social, psicológico e cultural. E entender as suas raízes é um passo essencial para encontrar saídas, resgatar laços e reconstruir pontes que nos mantenham emocionalmente vivos.
A ilusão da abundância social
Com redes sociais, grupos de WhatsApp, chamadas de vídeo e aplicativos diversos, criou-se uma falsa sensação de que estamos cercados de pessoas. A todo momento, temos acesso a rostos, opiniões, aniversários, conquistas alheias. Mas há uma diferença enorme entre estar em contato e estar em conexão.
Essa superexposição, em vez de fortalecer os vínculos, muitas vezes os esvazia. As interações se tornaram rápidas, superficiais, e muitas vezes performáticas. É como se estivéssemos todos em vitrines — exibindo nossas vidas, mas sem de fato nos abrirmos. Nessa lógica, falta profundidade. Falta escuta. Falta presença. E é isso que mata, pouco a pouco, as amizades verdadeiras.
A sobrecarga da vida adulta
Outro fator que explica essa recessão é o peso da vida adulta contemporânea. Trabalho, estudos, cuidados com a casa, família, autocuidado, demandas sociais… Tudo isso suga tempo e energia. A amizade, que antes era cultivada no ócio da infância ou na intensidade da juventude, passa a disputar espaço com uma lista infinita de obrigações.
E muitas vezes ela perde.
Com o passar do tempo, as prioridades mudam — o que é natural. Mas o que estamos vendo é um abandono quase sistemático das amizades em nome de uma produtividade exaustiva. “Vamos marcar”, dizemos, sabendo que talvez nunca aconteça. “Vamos nos ver com calma”, prometemos, como quem empurra para um tempo ideal que talvez nunca chegue.
O medo do conflito e a dificuldade da manutenção
Amizades exigem manutenção. Exigem diálogo, revisões de rota, enfrentamentos. Mas estamos cada vez menos dispostos a lidar com frustrações. Na cultura do “descarta e substitui”, amizades também passaram a ser tratadas como relações descartáveis. Qualquer desentendimento vira motivo para afastamento. Qualquer frustração se transforma em silêncio.
O medo de conversar honestamente, de encarar o desconforto, de pedir desculpas ou de perdoar também colabora para o esvaziamento das relações. Preferimos o afastamento silencioso ao confronto necessário. Só que ao fazer isso, empobrecemos nossas vidas emocionais.
A idealização e a exigência de perfeição
Em tempos de redes sociais, onde tudo é editado e filtrado, passamos a esperar que as pessoas sejam sempre divertidas, disponíveis, leves, inspiradoras. Criamos um ideal de amizade que não existe fora das telas. E qualquer relação real, com suas falhas e limites, parece insatisfatória diante desse padrão ilusório.
Muitos se afastam por pequenas decepções, por não encontrar no outro um espelho do que desejam ver. Exigimos demais dos amigos — lealdade incondicional, presença constante, identificação total — e esquecemos que amizade também é convivência com a diferença, com a ausência, com o imperfeito.
A exaustão emocional e a retração afetiva
Em um mundo onde todos estão sobrecarregados, muitos entram em estado de retração emocional. Cansados, machucados, desanimados, as pessoas deixam de procurar, de responder, de manter laços — não por desamor, mas por exaustão. A amizade vira mais uma demanda na agenda lotada. Só que, ao se afastar para se proteger, também se perde aquilo que poderia dar força.
Vivemos em um tempo de autodefesa constante. E isso tem um custo: a perda da intimidade. Porque para se manter uma amizade, é preciso ter energia para estar, para ouvir, para compartilhar.
A pandemia como catalisador
A COVID-19 acelerou esse processo. O isolamento físico afastou laços que já estavam frágeis. Muitos relacionamentos não resistiram à distância, às visões de mundo divergentes, aos silêncios prolongados. E mesmo após a reabertura dos espaços, muitos vínculos não foram retomados. Ficaram pelo caminho, como se tivessem sido podados e nunca mais florescessem.
A pandemia nos forçou a rever prioridades, a focar no essencial. Mas também revelou que muitas amizades existiam apenas por conveniência ou proximidade física. Quando isso se perdeu, perdeu-se também o vínculo.
Estamos escolhendo menos mas com mais critério
Por outro lado, esse período também trouxe clareza. Muitas pessoas têm se afastado não por indiferença, mas por maturidade. A era da recessão das amizades também pode ser vista como uma era de curadoria emocional. Menos quantidade, mais qualidade. Relações mais íntimas, mesmo que em número reduzido.
Nem todos os vínculos precisam ser eternos. E saber reconhecer quando uma amizade cumpriu seu ciclo pode ser um ato de honestidade, não de frieza. Estamos, talvez, aprendendo a manter perto quem realmente importa. E deixando ir, com respeito, o que já não faz sentido.
Amizade precisa de cuidado: como tudo que é vivo
A recessão das amizades é real e multifacetada. Ela é fruto de uma sociedade acelerada, cansada, conectada demais e, ao mesmo tempo, profundamente carente de afeto real. Estamos perdendo a prática de cultivar vínculos duradouros, de investir tempo e energia no outro, de estar presente sem pressa, sem máscaras, sem filtros.
Mas amizade ainda é — e sempre será — um dos pilares da nossa saúde emocional. Precisamos resgatar o valor do encontro, da escuta, do afeto gratuito. Reaprender a perguntar “como você está?” com real interesse. Insistir em marcar aquele café. Perdoar pequenos deslizes. Dizer “sinto sua falta” sem vergonha.
Não é tarde para reverter a recessão. Mas é preciso ação. Porque amizade não se sustenta no automático. Ela é escolha. E, como tudo o que vale a pena, dá trabalho. Mas também dá sentido.
Se você sente que está vivendo essa era da recessão das amizades, saiba: você não está só. E talvez seja hora de dar o primeiro passo — por menor que seja — para reverter esse ciclo. Uma mensagem, um convite, uma escuta sincera pode ser o início de uma reconexão. Porque no fundo, seguimos precisando uns dos outros. Mais do que nunca.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia
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