Serviço público precisa de mais mulheres para mudar
Na primeira edição do Concurso Nacional Unificado (CNU), o número maior de inscrições de mulheres (56%) não se refletiu na aprovação (37%). A disparidade pode ser explicada por fatores já conhecidos, como menor tempo disponível para estudo, devido ao trabalho doméstico e de cuidados, mais a dificuldade de acesso a bons materiais preparatórios, pelo custo elevado.
As aprovações mostram as mulheres concentradas nas carreiras ligadas a políticas sociais e direitos humanos, áreas em que também são maioria no ensino superior e na prestação direta de serviços públicos. Reconhecendo a questão, o governo federal estuda implementar uma bonificação para mulheres no novo CNU. A medida tem respaldo no concurso para diplomatas, em que o aumento de convocadas na segunda fase da prova de admissão elevou a aprovação feminina de 26% para 42% — maior índice já registrado na carreira.
Ainda que relevante, a iniciativa não aponta para a paridade de gênero no serviço público. Nenhuma carreira de finanças públicas integrou o primeiro CNU ou confirmou adesão à próxima edição. Tampouco houve nos concursos já realizados pelos ministérios dessa área medidas de atração de mulheres. Elas continuam ingressando com dificuldades na administração pública federal, enquanto a equidade segue como promessa.
Se compreender a administração pública é enxergar quem decide, os concursos revelam as dificuldades de inclusão da agenda de gênero no núcleo do poder político. A ausência de mulheres cria um círculo vicioso, em que ações de equidade não prosperam porque não são bem recebidas. Mesmo com respaldo científico e jurídico, faltam ações afirmativas em escala para ingresso e retenção de mulheres na burocracia federal. E, onde há vontade, há medo de contestação.
Isso se reflete nas dificuldades iniciais de acolhimento a mulheres grávidas, puérperas e lactantes em cursos de formação do CNU, desenhados para o formato presencial. Sem institucionalidade consolidada, elas seguem no concurso mais pelo apoio de familiares e colegas servidoras que pela existência de uma política pública de recrutamento e seleção receptiva à licença-maternidade e à amamentação exclusiva.
Incluir mais mulheres na administração pública torna as políticas mais justas e efetivas. A presença feminina na formulação e implementação de políticas amplia a capacidade do Estado de reconhecer desigualdades e alocar recursos com mais sensibilidade às diversas realidades sociais. Políticas como dignidade menstrual, combate ao assédio e à discriminação só avançaram no governo federal com mulheres no poder. Quantas políticas públicas surgirão quando mais mulheres puderem decidir?
O serviço público tem se democratizado, mas precisa aprofundar seu compromisso com as mulheres. Num contexto global de ataques às políticas de diversidade, seria importantíssimo que o governo federal estabelecesse metas de paridade de gênero — e raça — para o ingresso nas carreiras. Seria essencial revisar os vieses de gênero do CNU — que vão desde conteúdos que ignoram as experiências femininas até a forma como os cargos são descritos nos editais, pautados por uma lógica técnica e neutra de políticas públicas que, na prática, não existe.
Enquanto a métrica do mérito nos concursos se orientar pelo conteudismo, mulheres seguirão sendo reprovadas, mesmo tendo características desejáveis para a atuação no serviço público, como elevada escolaridade, prática na implementação e vivência no contato direto com o povo.
Ampliar a presença de mulheres — especialmente negras — pode transformar para valer o Estado brasileiro. Sem ações efetivas, a resistência à mudança prevalecerá, e a sub-representação feminina seguirá fragilizando a democracia e limitando o crescimento.
(*) Clara Marinho, conselheira da República.org e doutoranda em administração pública e governo pela FGV-SP, através do O Globo
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