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A morte da escrita cursiva?

Por Maria Alexandra Militão Rodrigues (*) | 04/09/2011 10:19

As palavras

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas. (...)

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

Como recolheremos e criaremos as palavras, em um futuro próximo, a partir da notícia recente de que o Estado de Indiana (EUA) aboliu a obrigatoriedade do ensino da escrita cursiva e que muitos outros estados americanos se preparam para tomar a mesma decisão? A polêmica vem tomando conta dos debates educacionais, nas últimas semanas, no mundo inteiro. Afinal, a escrita cursiva – formada por letras emendadas umas nas outras por meio da utilização do lápis ou da caneta – foi, durante séculos, a única modalidade de escrita ensinada e autorizada pela escola.

É fato que cada vez mais escolas alfabetizam inicialmente com a letra bastão ou de fôrma, dando continuidade à experiência das crianças nos contextos sociais letrados, onde a letra de imprensa pode ser encontrada por todo lado; e também porque esse tipo de letra parece ser mais “fácil” de grafar, por estar sujeita a menos variações do que a escrita cursiva. Por outro lado, a escrita cursiva é mais intimista: permite a cada um criar um estilo próprio; e, de certa forma, constitui a nossa assinatura personalizada no mundo do papel.

Enquanto escrevo este artigo no laptop, leio, em meu surrado caderninho de apontamentos, notas dispersas de reflexões que rabisquei com letra cursiva, ao longo da semana, para este texto. Faço parte de uma multidão que transita entre o mundo do papel e o mundo virtual. Por isso também me pergunto: qual será o lugar da escrita cursiva em um mundo onde teclar letras que magicamente aparecem na tela de um computador, sem que precisemos desenhá-las, parece tornar-se cada vez mais comum? Para nos situarmos diante dessa questão, precisamos fazer algumas ponderações de ordem histórico-cultural e pedagógica.

Quando chegamos ao mundo, a sociedade já carregava o gesto de escrever, com seus múltiplos usos e funções. Aprendemos a inserir-nos nesse gesto a partir dos seus modos de existência na nossa cultura, ao mesmo tempo em que o reinventamos. Ao longo da história, os leitores-escritores constituíram-se no cenário histórico-cultural da sua época com os dispositivos a que tinham acesso: suportes como a pedra, a argila, o pergaminho, o papel e instrumentos como a pena, a caneta de tinta permanente, o lápis, a esferográfica, foram utilizados na tarefa de escrever.

Mas como o gesto de escrever se inscreve na cultura tecnológica do século XXI? Enquanto muitos adultos vivenciam atualmente um processo de alfabetização/letramento digital - pois se alfabetizaram unicamente por meio de livros e utilizando escrita cursiva - as gerações mais jovens, em especial as crianças muito pequenas, vivem suas primeiras experiências com leitura e escrita no computador, em casa. Constituem uma geração de nativos digitais (os adultos são migrantes digitais). O instrumento de escrita é o teclado e o suporte, a tela do computador. Curiosamente, essas experiências, anteriores ou paralelas à escolarização, envolvem uma dimensão lúdica e de grande liberdade de experimentação.

Talvez a proposta de “livre expressão” e “escrita livre” preconizada por Freinet já na primeira metade do século XX encontre espaço mais fértil no ambiente do computador do que em muitas salas de aula. No espaço virtual, crianças muito pequenas cada vez mais exercitam livre e ludicamente sua expressão, brincando de escrever sem que lhes seja cobrado o acerto ou o erro. Ao clicarem nas teclas do computador, elas têm acesso imediato ao imenso universo da internet, com vídeos, jogos, imagens, música, um mundo onde a escrita dialoga com outras linguagens e dispositivos culturais. Isso fascina as crianças, além de conectá-las à grande rede mundial e a seus amigos nas redes sociais.

Como diz o provérbio, “o hábito faz o monge”, ou seja, a construção da escrita, no papel ou no computador, com letra cursiva, de fôrma ou digitalmente, implica em diferentes relações com o pensamento e com a cultura , envolvendo questões de ordem cognitiva, neurológica, afetiva e outras. Não apenas escrevemos, também somos escritos pela escrita. Como essas crianças serão escritas pela escrita digital?

Em contraste com essa aventura tecnológica (que também tem os seus perigos), a aprendizagem escolar da letra cursiva tem envolvido uma atitude de sacralização da escrita, mediante sua valorização como ofício manual centrado na forma em detrimento da livre expressão e da construção de uma autoria. No início da escolarização de crianças, jovens, adultos e idosos, a escrita é muitas vezes ensinada mais como uma habilidade motora do que como uma atividade cultural de grande complexidade, envolvendo o que Paulo Freire denominou de palavramundo. Como afirma a pesquisadora argentina Emília Ferreiro, frequentemente reduz-se a criança a uma mão que escreve e a um par de olhos que vê, ignorando-se a sua construção de um sofisticado sistema de representação da realidade.

A “mecânica” da escrita, reduzida à relação fonema-grafema, passa a ser mais importante do que a escrita como expressão e comunicação. Exercícios massacrantes de caligrafia visando a perfeição da forma, a supervalorização do erro, a prática da escrita-cópia com palavras sem sentido no mundo do estudante, têm contribuído para que a aprendizagem da letra cursiva assuma uma conotação desagradável. A realidade descrita, associada ao pragmatismo norte-americano e à rápida expansão do e-learning (transformado muitas vezes em fast learning), está certamente na base da percepção da “inutilidade” da escrita cursiva.

Vivemos em uma sociedade educativa, com múltiplos ambientes de comunicação e aprendizagem, mediados ou não pelas linguagens tecnológicas da informação e da comunicação. Pelos motivos já apontados, a escrita cursiva perdeu espaço e importância nas sociedades tecnológicas (não apenas a escrita cursiva, mas a escrita manual de modo geral). Contudo, não podemos de forma alguma restringir-nos à questão de como se escreve; é importante nos perguntarmos por que e para que se escreve, como a escrita circula na cultura, a que poderes e públicos ela serve, como e a quem a sociedade delega o seu ensino. Talvez o mais importante seja que os métodos de ensino/aprendizagem da escrita não submetam as crianças a processos que as aprisionem, em vez de incentivar seu vôo criativo.

Afinal, como vai ficar a escrita cursiva na sociedade global virtual, na qual as identidades se diluem cada vez mais e as marcas da singularidade e da sensibilidade humana perdem espaço para uma cultura massificadora? O velho caderninho de anotações pede-me que não abra mão da expressão cursiva que traduz um modo ser e estar no mundo, rabiscando as páginas do cotidiano. Penso especialmente nas crianças: que elas continuem tendo o prazer de escrever com o dedo sobre a areia ou na terra, unindo letras, reunindo-se intimamente à natureza.

Tenho a impressão de que anunciar a morte da escrita cursiva é quase como decretar a extinção do artesanato de cada país em nome da supremacia do mundo digital. Como artesania e tecnologia poderão com-viver no sec. XXI? Deixemos que o leitor-escritor criança, jovem, adulto ou idoso tenha condições para decidir como quer deixar suas marcas no mundo da escrita, em cada contexto e momento da sua vida pessoal e social!

(*) Maria Alexandra Militão Rodrigues é professora na Faculdade de Educação, da Universidade de Brasília. Graduou-se em Psicologia na Universidade do Porto (Portugal). Tem mestrado e doutorado em Psicologia pela UnB. Áreas de interesse e pesquisa: escrita e subjetividade na formação docente, memória educativa e identidade do professor, psicogênese da escrita, oficina da palavra e cultura da infância.

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