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Animais domésticos e o debate sobre a sua natureza jurídica

Por Sérgio Iglesias Nunes de Souza(*) | 04/03/2024 08:30

Em 2/2/2023, foi instaurado o Projeto de Lei 179/2023 perante a Câmara dos Deputados, a par de outros que o antecederam [1], em que se reconhece a possibilidade da existência da família multiespécie, com a inclusão do animal doméstico como membro da entidade familiar.

O projeto de lei estabelece, em síntese, as seguintes modificações:

1) cria a proteção integral à denominada família multiespécie;
2) os animais de estimação têm direitos fundamentais, como o direito à vida, alimentação, abrigo, saúde, destinação digna e respeitosa, meio ambiente ecologicamente equilibrado, acesso à justiça;
3) os animais são considerados absolutamente incapazes de exercer diretamente os atos da vida civil que forem compatíveis com a sua natureza, devendo ser representados na forma da lei, por meio dos denominados “pais humanos”;
4) excluem-se do status de multiespécie familiar os que envolvem os animais silvestres;
5) vedação da proibição genérica, em convenção ou regimento interno, da permanência de animais de estimação nas unidades autônomas dos condomínios;
6) instaura-se o poder familiar sobre os animais de estimação aos cônjuges considerando-se as relações de afetividade para com o animal e, sobretudo, o animal é considerado filho;
7) dar nome e sobrenome ao animal;
8) exercer a guarda unilateral e compartilhada;
9) administração e reconhecimento de patrimônio ou renda que possam ser atribuídas ao animal, inclusive, valores decorrentes de decisões judiciais, em proveito exclusivo deste;
10) responsabilidade pelos pais humanos de estimação responderem pelo dano causado, se não provarem culpa da vítima ou força maior;
11) em caso de separação, de divórcio ou de dissolução da união estável, judicial ou extrajudicial, deverá ser acordado ou decidido sobre a guarda, unilateral ou compartilhada, dos animais de estimação, além de eventual direito de visitas e de pensão alimentícia específica para a manutenção das necessidades do animal;
12) competência do juízo de família para decidir sobre o destino e os direitos do animal de estimação em caso de separação, divórcio ou dissolução da união estável, com auxílio ao juízo, inclusive, de médico veterinário especializado em etologia ou psicologia animal ou em área similar, que será previamente ouvido nos casos sobre a destinação dos animais de estimação;
13) integração ao patrimônio do animal dos valores monetários decorrentes de decisão judicial condenatória ou de pensão alimentícia exclusivamente destinados ao animal;
14) em caso de morte do animal que possua patrimônio, os valores ou bens deixados poderão ser aplicados em benefício exclusivo da respectiva prole ou de outros animais pertencentes à mesma família multiespécie, mantido o dever de prestação de contas, vale dizer, instituiu a herança em favor da prole animal;
15) deveres dos pais humanos ou tutor;
16) crimes em relação ao animal de estimação, dentre outras disposições.

Os debates sobre natureza jurídica dos animais - Atualmente, há debate em andamento na reforma do Código Civil de 2002 sobre a possibilidade da criação de uma terceira categoria em relação aos animais domésticos, equiparando-os a sujeitos de direitos, ou discute-se sobre a possibilidade de criação de uma nova categoria de ente “sui generis”.

Há, de fato, no Brasil, duas correntes doutrinárias sobre a natureza jurídica dos animais domésticos:

1) a corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil de 1916 e até o momento no Código Civil de 2002 e na qual não se vislumbra a necessidade de uma modificação legislativa quanto à sua natureza jurídica;
2) a segunda, considerada moderna, que entende que o animal deve ser considerado por uma futura legislação como um ser sujeito de direito e, por essa interpretação, seria possível reconhecer a inclusão do animal como membro da família no contexto de família multiespécie, com possibilidade de adoção da guarda compartilhada (instituto do poder familiar aos filhos) também aos animais, dentre outras consequências, como o direito de ir e vir, direito do animal a um patrimônio, assim como a sua prole como “herdeiro”, etc., nas diretrizes do referido projeto de lei acima mencionado.

Tais debates não ocorrem somente no Brasil - Na França reconheceu-se, na Lei de Proteção da Natureza de 1976, e há nove anos reforçou o tribunal francês, o entendimento da natureza da senciência do animal, cujo significado é todo aquele que percebe pelos sentidos ou que recebe impressões. É preciso lembrar, sobretudo, que por esse único conceito de senciência não se distingue o animal e o ser humano, já que ambos são, minimamente, sencientes.

A Corte Suprema da Colômbia, em 2016, reconheceu o rio Atrato (rio que banha a Colômbia) como sujeito de direitos (sentença T-622), com o objetivo de sua conservação e proteção.

Ambos os exemplos acima têm esse efeito decorrente de um mesmo fenômeno: a crença de que haveria maior proteção jurídica alterando-se a condição legal de sujeito de direito, seja o animal ou do referido rio, como ocorreu no Poder Judiciário colombiano.

Ponto controverso - Contudo, o risco dessa interpretação é a ausência de uma distinção à luz da ciência do direito do que é sujeito de direito e o que é bem, com seus reflexos jurídicos pertinentes.

A senciência do animal decorre da natureza do ser vivo que é todo o animal, inclusive, o doméstico que se nota a sua capacidade não só de locomoção por vontade própria (conceito clássico doutrinário de bem semovente) como também a sua capacidade de perceber certos sentidos ou impressões, normalmente, de alegria ou de tristeza, de situação de perigo etc.

Os animais são sencientes dada apenas sua própria condição de existência de sua natureza que já é e independe de vontade de lei (ao texto normativo é possível declarar apenas aquilo que já é diante da natureza das coisas). Não se trata de especismo esse entendimento, mas de distinção salutar do conceito de pessoa e sujeito de direito e de bem à luz da ciência do direito, sobretudo, do Direito Civil.

Cabe a outros ramos do conhecimento humano identificar a natureza das coisas, o mundo do ser, pois compete à filosofia, a biologia ou a antropologia, por exemplo, no âmbito de suas competências, a análise do seu objeto de estudo.

O animal como sujeito de direitos: projeções - Nada impede que a legislação nacional reconheça o animal como bem senciente ou decorra esse entendimento da própria doutrina civilista entre os prosélitos do conceito ampliado de bem semovente como todo o bem que se locomove por vontade própria e que seja dotado da referida senciência.

Porém, uma alteração legislativa que modifique a natureza jurídica de bem do animal não só é desnecessário, como também implicará em inúmeros problemas jurídicos em relação às demais normas vigentes que exigiriam, por exemplo, uma substancial alteração para se manter a coerência sistêmica e a logicidade do ordenamento jurídico.

E, ao que parece, é um esforço hercúleo que, muitas das vezes, ficará sem solução satisfatória, tanto àqueles que se inclinam por um ou outro entendimento doutrinário.

São alguns exemplos de problemas a serem enfrentados ao se reconhecer o animal como sujeito de direitos ou se vicejar a criação de uma terceira categoria de ente:

1) a impossibilidade do animal ser objeto de contrato de compra e venda ou doação;
2) a possibilidade de atribuir-se ao animal a condição de herdeiro ou legatário, se entender que o animal é membro de uma família multiespécie;
3) a titularidade de ações cíveis ou penais;
4) a impossibilidade de recair o usufruto ou o penhor sobre o animal, inclusive, os animais rurais que ostentariam a mesma condição, neste particular, de senciência;
5) a eventual ausência de responsabilidade civil de seu proprietário por dano praticado pelo animal a terceiros, não sendo suficiente uma mera hipótese de exclusão legal da responsabilidade do animal, dentre outras situações.

Guarda compartilhada - A natureza jurídica do animal é de bem à luz do atual Código Civil de 2002, doméstico ou não, por disposições diversas: artigos 82; 445, parágrafo 2º; 936, 964, inciso IX; 1.297, par. 3º; 1.313, inciso II; 1.390 e 1.397; 1.442, inciso V; 1.444; 1.445, parágrafo único; 1.446; 1.447 e 1.784, 1798 e 1799.

A maior polêmica é a questão da possibilidade ou não de adoção da guarda compartilhada na dissolução matrimonial ou de conviventes em união estável. De fato, o instituto da guarda compartilhada do animal doméstico foi utilizado em algumas decisões dos Tribunais pelo fundamento da analogia.

Por sua vez, já entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que é incabível a titularidade do animal doméstico para promover ação possessória, por afastar a qualificação de sujeito de direitos e que o animal deve ser regido pelo direito das coisas (11ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1000235-72.2020.8.26.0252, Rel. Des. Gilberto dos Santos, j. 10/05/2021).

Há  entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp: 1713167 SP 2017/0239804-9, relator Min. Luis Felipe Salomão, j. 19/06/2018, 4ª Turma, DJe 09/10/2018) que, a nosso ver, é um leading case, que afastou a adoção da guarda compartilhada por ser um instituto inerente ao poder familiar, sem olvidar da afetividade e do caráter peculiar que é, de fato, o animal doméstico.

A solução para os conflitos de dissolução matrimonial ou de união estável, em virtude da natureza própria do animal doméstico em regime de copropriedade, requer a análise da posse do bem semovente que deve ser atribuída, com a dissolução do ex-casal, de forma compartilhada, em razão do animal ser um bem infungível diante da afetividade que merece, sem dúvida, proteção jurídica aos proprietários ou aos seus justos possuidores.

Ou a quem não tiver interesse na posse do animal, ainda que compartilhada, caberá a divisão das despesas da manutenção do animal doméstico com o outro, se não comprometer, obviamente, a subsistência de um dos ex-cônjuges ou ex-conviventes ou, quando não, a fixação de indenização pela manutenção e posse exclusiva do animal a um deles, a depender do caso.

O compartilhamento da posse do bem animal pelo uso da analogia ou da interpretação extensiva, se assim se entender necessário para a solução de tais conflitos, é a do regime jurídico da multipropriedade.

Não é atribuindo a analogia da guarda compartilhada que resolveríamos o problema sob o prisma hermenêutico, pois o resultado útil é o mesmo pelo reconhecimento do direito de posse do bem semovente compartilhado no tempo ao ex-casal ou ex-conviventes, porém, sem criar uma terceira categoria ou uma figura “sui generis” diante da interpretação das normas processuais e materiais vigentes que devem ser, entre si, compatíveis.

Ente “sui generis”
A criação de uma terceira categoria de ente “sui generis” ao animal doméstico, sob o prisma hermenêutico, deve ser evitada para não se criar normas conflitantes.

A lanço de exemplo, o Código Penal no artigo 180-A, com redação da Lei 13.330/2016, com a finalidade de coibir os furtos e roubos de animais, sobretudo, de modo a atingir àqueles que se beneficiam com as práticas desses crimes, especialmente, o receptador, criou o crime de receptação de animal e, nesse passo, mais uma vez, o tratamento jurídico do animal é definido expressamente como um bem e qualificou-o como SEMOVENTE, pois o termo, em que pese ser cediço na doutrina civilista, não foi utilizado expressamente nem mesmo no Código Civil de 1916 ou o de 2002.

Inexistiria uma coerência normativa se uma nova legislação civil estabelecesse uma terceira categoria de ente ao animal doméstico, desqualificando a sua condição de bem, já que compromete, tecnicamente, a aplicabilidade daquela norma penal.

Por essa razão, entendemos que há a possibilidade de que o dano ao bem semovente doméstico poderá recair, em favor de seus proprietários ou possuidores, não só os direitos de sua preservação ou indenização por dano material ou moral (por afetar bens da personalidade, como o estado psíquico do proprietário do animal, conforme a hipótese, em virtude da afetividade justa a ser protegida), assim como também recaem os deveres de seus proprietários por atos praticados pelo animal em relação a terceiros, como em algumas questões que envolvam os direitos de vizinhança, relações condominiais, etc.

É possível alcançar a proteção da causa animal por meio da manutenção da sua natureza jurídica como bem semovente, ser senciente que é (decorrente de sua própria natureza), infungível e indivisível, sem abolir as estruturas e conceitos normativos atuais do Código Civil de 2002 e outras normas vigentes.

A proteção do animal ou mesmo de um rio, como ocorreu na Colômbia, citado acima, pode ser conquistada através do próprio interesse público representada a sociedade pela competência da autoridade policial (nos crimes, por exemplo, de maus tratos), pelo Ministério Público ou pela própria parte interessada nas relações civis pertinentes através da adoção das medidas judiciais cabíveis quando se tratar de dano ao animal ou a sua morte injustificada (ex: um testamento que determina a eutanásia de seu animal doméstico com o falecimento de seu proprietário por este acreditar que ninguém cuidará melhor do seu animal de estimação, como já ocorreu nos EUA).

Ou, ainda, de danos praticados por animais domésticos cuja responsabilidade é de seu proprietário ou possuidor em relação a terceiros, sendo despicienda a mudança da sua natureza jurídica e da titularidade processual estabelecida atualmente pelo Código de Processo Civil e Penal.

Deve-se perquirir em que medida é realmente necessária a mudança da natureza jurídica atual dos animais para a proteção da causa animal, se há mecanismos legais possíveis de proteção e como melhor manejá-los, v.g., tutelas de urgência liminarmente, ao invés do uso de Habeas Corpus, pois o interesse jurídico decorre das pessoas, isto é, da sociedade, já que a ciência do direito é uma criação humana convencionada para a proteção daquilo que se pretende estabelecer, sejam direitos e deveres, em que tais direitos (objetivo e subjetivo), existem e coexistem em relação às pessoas ou alguns entes como sujeitos de direito que assim se convencionou por envolver indiretamente as pessoas, físicas (inclusive, o nascituro) ou jurídicas e, ainda, aqueles que, individualmente ou coletivamente, podem ser representados em juízo, ativa e passivamente, conforme o artigo 75 do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, sendo eles a União, Estado, autarquias e fundações, a massa falida, o espólio, a herança jacente, a herança vacante, as sociedades, associação e a sociedade irregular e o condomínio edilício, bem como o nascituro (Lei 11.804/2008), pelo reconhecimento dos alimentos gravídicos.

Independentemente da qualificação jurídica que se dê ao animal doméstico com o projeto de reforma em andamento do Código Civil de 2002, é de interesse de todos a busca pelo mesmo resultado: a adequada regulação normativa para a proteção da causa animal, sem olvidar das conquistas e avanços de diversos ramos da ciência do direito e da coerência normativa e sistêmica à luz da teoria do diálogo das fontes, no próprio Código Civil de 2002 e em relação ao Código de Processo Civil e do Código Penal, assim como da legislação extravagante, justificando-se, em nosso pensar, a manutenção da sua natureza jurídica como bem semovente.

É essa a solução que se espera e que se acredita acontecer com a reforma legislativa do Código Civil de 2002 que se avizinha.

(*) Sérgio Iglesias Nunes de Souza é mestre e doutor em Direito Civil Comparado na PUC-SP, professor titular concursado na disciplina de Direito Civil III (Direito das Coisas) na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP).

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