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As curvas da Serra Mogi-Bertioga

Por Paulo Renato Coelho Netto (*) | 10/06/2016 10:34

As viagens de universitários para Mogi das Cruzes estão entre as melhores lembranças que guardo do tempo de faculdade. O trem só estudante - que saía do Brás às 18h08 -, e os ônibus que brotavam na cidade, vindos de todas as regiões: São Paulo, Santos, Osasco, Guarulhos, Grande ABC, São José dos Campos, Jacareí...

Era uma festa, um desafio aos limites do cansaço. Quase todos saíam de casa muito cedo, trabalhavam o dia todo e ainda tinham coragem para encarar trilhos e estradas para se formar.

No percurso tinha de tudo, até festinha de aniversário com bolo, doces e refrigerantes. Amigo secreto. Algumas com o ônibus decorado com balões coloridos.

Mogi das Cruzes ganhava vida na chegada do trem e dos ônibus e perdia o charme quando eles iam embora.

Eu ficava em frente à faculdade esperando a chegada dos amigos nesses ônibus. Morava em república, mas para chegar lá também encarava 1.200 quilômetros de estrada, quatro vezes ao ano, de Campo Grande (MS) para estudar em Mogi.

Ninguém reclamava! Era uma aposta no futuro, um desafio à preguiça, ao preço da mensalidade, às leis da física. Um passo diário, de formiguinha, rumo a um futuro melhor.

Cada um que descia de um daqueles ônibus chegava sorrindo. Em um minuto, não sei como, deixavam a condição de zumbis que vinham dormindo - ninguém é de ferro - para encarar a sala de aula praticamente até dez da noite.

Deveria valer no currículo como diferencial. Alguém que encara duas viagens à noite, sob chuva, neblina na serra, frio e curvas perigosas, tinha que ser analisado de outra forma pelo RH na hora de conseguir um emprego.

Alguém que se submete a uma odisseia assim é forjado a encarar os trancos da vida de outra forma. E isso o ano todo, de segunda a sexta-feira. Aulas inclusive aos sábados de manhã, das oito às onze e meia.

Hoje bem cedido (9/06), a primeira notícia que li foi sobre o acidente com um ônibus de universitários que voltavam de Mogi para o Litoral Norte paulista. São 18 mortes, muitos feridos, alguns ainda em cirurgia e em estado grave.

Fiquei e ainda estou sem palavras. O que imagino é que, assim com há mais de vinte anos, certamente o clima deveria ser semelhante nesse ônibus que virou um grande ferro retorcido na serra Mogi-Bertioga.

Havia sonhos ali: um pedreiro que estudava engenharia civil, acadêmicos de administração, psicologia, farmácia, enfermagem. Sonhos individuais e de famílias inteiras. Gente jovem reunida.

Sinto por eles, sem demagogia alguma. Sinto muito. Pela vida que acabou bestamente no escuro, numa curva fechada, em um capotamento.

Sinto tanto ainda pelos pais. Deveria existir alguma lei irrevogável na natureza que proibisse qualquer filho, em qualquer lugar do mundo, de morrer antes do pai e da mãe.

Vivemos em um país cujo sistema político e social, por consequência, está falido, esgarçado pela corrupção. Usurpado por canalhas de tudo quanto é jeito, região e escalão. Parasitas debiloides, arrogantes. Muitos dos quais ignorantes que não estudaram.

Um país que sequer dá condições para que recém-formados tenham acesso ao mercado de trabalho, que desconhece o sacrifício (até de perder a vida) que muitos se impõem para se formar e crescer socialmente, ho-nes-ta-men-te.

Um país que não dá a mínima para a educação, que tem gente que rouba até merenda escolar de crianças, que paga salários ridículos por hora-aula aos professores.

Um país que já teve um presidente que se orgulhava da própria ignorância e que declarou, solenemente, que estudar não é importante.

No entanto, o Brasil não é feito dessa gente escroque.

O Brasil que tem alguma esperança de sucesso é construído por jovens como estes que morreram na serra Mogi-Bertioga, às 23 horas de uma baita quarta-feira, voltando da faculdade para casa em uma estrada escura, cheia de curvas e pegadinhas sinistras, depois de mais um dia de trabalho.

A eles, o meu respeito.

(*) Paulo Renato Coelho Netto é jornalista, pós-graduado em marketing e escritor.
renatocoelhonetto@gmail.com

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