Como lidar com a dor de um projeto de vida desfeito após um término
Como lidar com a dor de um projeto de vida desfeito após um término. Acho que me arrependi. Devo voltar?
Nossa memória é seletiva, e no processo do luto e da melancolia, ela costuma nos trair.
"Ter sido arrancado de uma porção de coisas sem sair do lugar". É assim que Freud descreve a experiência do luto em "Luto e Melancolia". Entendo que todo fim de amor é também uma vivência de muitos "lutos e melancolias" —nem sempre previstos, cuidados ou sequer autorizados—, especialmente quando fomos nós que decidimos "matar" aquela relação. Parece contraintuitivo sentir-se "arrancado de uma porção de coisas sem sair do lugar" quando foi exatamente você quem escolheu partir para novos lugares, acreditando que estes te trariam novos encontros, novas vidas, novos sentidos… que te fariam melhor.
Mas, como nos lembra Freud: "A perda de um ser amado não é apenas perda do objeto, é também a perda do lugar que o sobrevivente ocupava junto ao morto". Abrir mão de uma relação —ainda que desgastada, esvaziada, desencontrada, por vezes até insustentável— é também abrir mão de uma versão de si. E, num primeiro momento, dos planos que eram "nossos".
Por isso o alívio de ter sido capaz de ir embora, de ter tido coragem de seguir acreditando e buscando um amor que nutra, vem com um gosto agridoce. Um alívio que se percebe esvaziado de pesos que machucavam mas também de gestos familiares que nos davam contorno, conforto (ainda que desconfortável) e assim traz o amargo dos dias em que nos sentimos subnutridos de vínculos, de encontro, de construção, sentido e sabor.
Num mundo que nos convida a seguir sempre em frente e nos promete guinadas rumo à felicidade, caso tenhamos coragem de tomar as rédeas da própria vida, perceber-se perdido em meio ao próprio vazio, ainda que com as tais rédeas nas mãos, é sempre angustiante e desconcertante. É aqui que pensamos: será que me precipitei? Será que fiz a escolha errada? Será que abandonei um "amor tranquilo, com sabor de fruta mordida", pela busca de uma paixão intensa dessa eterna adolescente inconsequente que sou? Será que fui tão pouco resiliente quanto os tempos de consumismo afetivo que tanto critico —e joguei fora uma relação enfraquecida, que talvez ainda pudesse ser restaurada com mais tempo, mais delicadeza, mais esforço de manutenção?
Todas essas dúvidas rapidamente se tornam convites ao arrependimento e à retomada da relação. Mas a questão é: do que você se arrepende? De não estar com seu antigo parceiro ou parceira hoje ou de, por não estar com ele, sentir que este projeto de vida que lhe é tão importante —seja ele crescer com a família unida e não fazer parte da estatística dos pais separados; casar ; ter filhos; sair da cidade grande e montar um pequeno sítio de orgânicos no interior… Ou quaisquer outros planos e sonhos que fizessem parte da constelação afetiva de vocês automaticamente morreu com a morte deste amor? Como se essa pessoa fosse a única chave capaz de abrir este portal para o futuro com mais sentido, amor, presença —o futuro pelo qual você tanto batalhou?
Nossa memória é seletiva. E no processo do luto e da melancolia, ela costuma nos trair. A gente esquece que, durante a relação, foi justamente em nome desse projeto de vida que sustentamos muitos dias esvaziados, até que o presente se tornou insustentável. Mas agora, distantes desse presente e próximos do vazio, ele já não parece tão sem sentido assim —e volta a se fantasiar de caminho possível para a tal felicidade. A distância romantiza o que a convivência corroía.
Quando a gente se afasta, esquece também que aquele projeto de vida, que parecia tão nosso, era muitas vezes uma fantasia no singular: projetávamos uma versão futura de nós mesmos. O projeto do qual parece tão difícil se desfazer é muito menos algo que vinha sendo "construído por nós dois" e muito mais algo que estava sendo projetado por você, sozinho, contando com aquele outro como personagem importante da sua narrativa fantasiosa. Isso significa que o arrependimento não deve ser encarado como sinal de erro de escolha ou convite à volta à relação, e sim como sintoma. Em vez de elaborar a ausência, nos agarramos a ela —como se manter o vínculo com o que já não está presente fosse uma forma de não se perder completamente. O arrependimento, nesse caso, funciona como uma defesa contra o vazio psíquico. É uma tentativa de suturar, com desejo, aquilo que a realidade já rompeu.
Mas podemos encará-lo também como retorno do desejo. Do seu desejo, que insiste não porque a relação ainda faça sentido, mas por que algo em você ainda não foi completamente elaborado. E dentro desse processo de elaboração, há muitas camadas para a serem cuidadas antes de qualquer tentativa de reconstrução com o ex.
Em vez de voltar à cena e ao antigo personagem do afeto, é preciso passar a limpo o que nela ainda pulsa. Porque muitas vezes o que nos dói não é a falta do outro, mas o lugar afetivo em que habitávamos junto a ele. O modo como sonhávamos, como nos víamos, como projetávamos futuro. O que se arrepende não é necessariamente o sujeito que ainda ama. É o sujeito que idealizou, que acreditou, que projetou um casamento, uma aposentadoria, uma casa no campo com aquele alguém.
Há que se permitir viver a frustração e a dor desta versão da história projetada —a família feliz não será a família composta por você, ele e os dois filhos que tiveram juntos todos vivendo na mesma casa e compartilhando o tal sítio com as futuras gerações de noras, genros e netos. Mas isso não significa que você é incapaz de construir uma nova família feliz. Num outro arranjo. Com novos personagens que te ajudarão a dar novos rumos para a construção de uma vida menos projetada nos seus ideais e mais tecida a partir dos atravessamentos das possibilidades e faltas de vocês dois. Freud nos ensina que o luto só se conclui quando o sujeito consegue retirar o investimento libidinal do objeto perdido e recolocá-lo em outro lugar.
O perigoso é que, enquanto não encontramos um novo amor romântico para direcionar todas as nossas projeções, muitos de nós não nos damos o tempo de atualizar os próprios sonhos e planos —a tal casa no interior teria mesmo que ser construída em casal ou pode ser compartilhada com amigas? O desejo da maternidade precisa estar condicionado àquele ex-marido ou posso buscar um novo companheiro ou até mesmo me questionar se bancaria uma maternidade solo?
Se nesses momentos de vazio e silêncio os tais projetos de vida aparecem como algo tão importante para você, antes de correr de volta para aquela pessoa com quem tentou —e não estava feliz, ou não estava construindo, ou não estava sonhando junto—, por que não se perguntar se ainda é possível sonhar sozinha?
Não saber o que vem agora é assustador. Mas também é bonito. Porque no não saber há espaço para novos personagens, novos jeitos de amar, novas ferramentas para construir os tais planos e até para sonhar novos planos, por que não? Só que, para isso, é preciso ter coragem de deixar esse espaço vazio. Sem preenchê-lo com medo. Sem preenchê-lo com fatalismo. E, principalmente, sem tentar encaixar à força as peças antigas como se elas fossem as únicas capazes de remontar o seu quebra-cabeças de amor feliz. Permita-se um amor caleidoscópio, que desencaixa, gera estranheza, novos vazios, e novas formas.
(*) Carol Tilkian, psicanalista, pesquisadora de relacionamentos e palestrante, através da Folha de S.Paulo
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