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Cuidados paliativos na enfermaria

Roman Orzechowski(*) | 08/09/2022 08:30

A experiência dentro de uma enfermaria de cuidados paliativos demonstra um sentimento de dureza e gratidão. A dureza pela capacidade de nos tornarmos fortes para suportar junto ao paciente e à família toda a dor e o sofrimento que surgem ao final da vida com suas consequentes perdas. A perda de um ente querido, a perda de tempo que podia ter sido, mas não foi, a perda de deambular, a perda do amor, a perda da autonomia.

Nesse contexto, aparecem diariamente os arrependimentos, o pensamento no real valor do viver, aquele medo que travou, que congelou. Aí os movimentos para tentar reverter esse sentimento acontecem das mais variadas formas. Pouco em palavras, porém mais em choro e irritabilidade, em querer voltar para casa, inclusive com medo, com silêncio. Por que é tão triste ficar sozinho na enfermaria? Quando o paciente fica sozinho, que na maioria acontece no período noturno, eles agitam mais, ficam mais inquietos, e morrem mais nesse horário.

Os pacientes e familiares nos ensinam a lutar com todas as dificuldades e desconfortos. E nos questionam: Como amar a vida se está morrendo? Será que está feliz mesmo? São perguntas que são respondidas diante da felicidade que se vê em alguns olhares, do alívio, da parada dessa angústia, da indecisão, das frustrações. Acredito que aqui as lembranças salvam. A lembrança do primeiro beijo, das viagens, dos cafés, das alegrias e das despedidas. O olhar para trás e ver que valeu a pena, que eu vivi muita história. Vemos que as conquistas pessoais que muitas vezes se refletem nos bens materiais demonstram no concreto a vida que se construiu; a família que se formou – e assim poder partir rumo ao desconhecido. Para diminuir a ansiedade, sempre comentamos nas visitas médicas: “Viver um dia de cada vez”.

Os cuidados paliativos simbolizam o manto, a proteção para assim a equipe caminhar ao lado do paciente e da respectiva família nesse caminho que levará inexoravelmente à morte.

Na enfermaria, necessitamos realizar frequentemente reuniões familiares. As pessoas são singulares e sofrem por não ter mais o pai presente e atuante. Como assim não tem mais o que fazer com meu irmão? Muitos familiares trazem na reunião a angústia de não poder ajudar a curar aquele câncer. Nessa jornada de tanto estudo conquistada pelo médico, aliada ao poder fornecido pela sociedade, aparecem sem controle a morte, o fim, o recomeço. Assim a reunião deve ser com humildade, acolhimento, escuta. Não porque perdemos, mas porque a família revive a criança perdida, abandonada – com a ideia de a equipe auxiliar nessa elaboração do luto. Precisam de ajuda para mais uma vez usufruir desse manto protetivo.

Surge nesse momento a empatia como sentimento primordial. Acredito que seja a base do cuidado paliativo, em especial na enfermaria.

Muitos familiares não têm condições de cuidar do paciente em casa. O medo da morte no domicílio, as crianças em volta, a vida como ela é. Precisamos ter coragem para assumir o melhor cuidado na terminalidade. Na enfermaria de cuidados paliativos assumimos os pacientes em fase avançada, com pouco tempo de vida, e que muitos não sabem ou não querem saber.

Não temos uma área física específica, acreditamos que a morte traspassa os doentes, e todos devem aprender a lidar com empatia e proteção. Precisamos pensar nas medidas fúteis que não mudam o cenário e muitas vezes acrescentam mais sofrimento ao paciente. Saber o que esse paciente deseja, suas vontades, principalmente quando não puder mais dizer. Não trago números, mas é sabido que uma grande minoria recebe esses cuidados. A grande maioria morre desassistida sem poder escolher o que de fato faz sentido para si.

O grande debate atual é cultural, na busca da juventude, no antienvelhecimento, nas mídias sociais. Na enfermaria aparecem todas essas questões. Assim, me considero, como profissional, privilegiado por trabalhar numa das poucas deste país – no Brasil atualmente existem em torno de 150 equipes especializadas de cuidados paliativos.

E aqui trago o outro sentimento, que é a gratidão. A gratidão de todos os dias aprender com esses valores muito contra a maré e assim poder viver mais leve, mais dentro da realidade. Porque, quando estiver como paciente nessa enfermaria, espero poder aproveitar dela ao máximo e sentir a paz e o amor que só ela oferece dentre diversas escolhas para viver com qualidade.

(*) Roman Orzechowski é mestre em Medicina pela UFRGS e médico contratado do Serviço de Dor e Cuidados Paliativos do HCPA.

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