Governança e legado: modernizar sem perder as raízes
A maior herança que um pai no agronegócio pode deixar aos filhos não se mede em hectares ou arroba de boi, mas na capacidade de perpetuar valores. Falar sobre governança é também falar de afeto, continuidade e da história de empresas que, em estados como o nosso, o pujante Mato Grosso, nasceram em casa e semearam o futuro com coragem, resiliência e muito trabalho. Hoje, nosso desafio é outro: como modernizar sem perder a essência?
A resposta passa pela governança familiar, uma ferramenta estratégica capaz de equilibrar inovação e tradição. Estimativas apontam que cerca de 90% das empresas brasileiras são familiares (IBGE, 2021) e, segundo o Censo Agropecuário de 2017 (IBGE), ao menos 77% das propriedades rurais são administradas por membros da própria família. Outro dado importante é que em Mato Grosso, a agropecuária representa 50% do PIB estadual (IMEA, 2024), e boa parte dessa força produtiva tem origem em estruturas familiares.
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Modernizar é inevitável. A adoção de novas tecnologias, rastreabilidade, práticas ESG, automação e controle de dados não é mais "luxo", é condição de sobrevivência e competitividade no mercado. O problema é quando a modernização atropela o que deveria preservar, que é o valor das relações, a história da empresa e os aprendizados passados de pai para filho e netos.
A governança familiar oferece esse equilíbrio. Ao criar instâncias formais como conselhos, definir papéis, acordos de sócios e protocolos familiares, ela permite que o negócio se profissionalize sem perder sua identidade. Isso não apenas evita conflitos de herança e divergências familiares, mas também otimiza a tomada de decisões, tornando a empresa mais ágil e preparada para os desafios do mercado.
A urgência desse tema é reforçada por dados que mostram a fragilidade dos negócios familiares. Segundo a Harvard Business School, apenas 30% das empresas sobrevivem à segunda geração, e somente 15% chegam à terceira. A ausência de planejamento e governança é o principal fator dessa fragilidade. O que está em jogo não é apenas patrimônio, mas o legado. E o legado não se mede apenas em hectares, arrobas de boi, cifras ou estruturas, mas em valores que se perpetuam, como ética, compromisso e visão de longo prazo.
A modernização se torna, na verdade, o elo entre as gerações. A transição para a agricultura 4.0 é um ponto de encontro, onde a experiência de vida e o conhecimento do campo da geração pioneira se unem à visão moderna e à familiaridade com as ferramentas digitais que a nova geração traz. No setor de grãos, isso envolve o uso de drones, sensores e softwares de gestão que otimizam o uso de insumos. Já na pecuária, compreende rastreabilidade, manejo inteligente e biotecnologia, segundo a Embrapa.
Atualmente, a permanência dos jovens no campo depende muito mais dos investimentos em tecnologia e gestão da herança. Uma pesquisa da EY em colaboração com a CropLife Brasil constatou que quase 60% dos empreendedores rurais brasileiros estão na faixa etária de 25 a 44 anos, e eles estão redefinindo a imagem tradicional do agricultor ao fazer uso de novas tecnologias.
A boa notícia é que o tema da governança corporativa tem ganhado força. De acordo com a pesquisa "Pratique ou Explique" (2024), do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), a taxa média de aderência das companhias abertas a boas práticas de governança aumentou para 67% em 2024, um crescimento de 1,7% em relação a 2023. Esse movimento reflete a crescente conscientização de que a profissionalização da gestão e a adoção de conselhos consultivos, comitês de ética e protocolos familiares são essenciais para a perenidade dos negócios e a superação dos conflitos inerentes à transição.
Neste mês tão especial, em que homenageamos os pais, geralmente pioneiros, fundadores, líderes e mentores, é tempo também de refletir, que futuro queremos deixar? Que modelo queremos ensinar? Como tornar sustentável não só o negócio, como as relações que o sustentam?
"A vida é feita das nossas escolhas. Mas a continuidade depende dos nossos acordos. E os acordos precisam estar no papel, não para punir, mas para lembrar". Esta frase da advogada Fernanda Jubran, especialista em governança, resume a importância desse trabalho das famílias empresárias. Ela sempre reforça, em suas palestras, que sem combinados claros, nenhuma tradição resiste e que governança não é somente para evitar briga, é sobre cultura.
Fernanda pertence à quarta geração de uma família imigrante libanesa que construiu um grande patrimônio no Brasil — e o perdeu por falta de acordos, clareza e estrutura. "A minha família está brigando há mais de 30 anos num inventário no Fórum Central. É o segundo maior inventário de São Paulo. Tudo isso poderia ter sido evitado com governança", disse em uma entrevista.
A jornada da governança familiar tem o poder de tecer o legado do passado com as oportunidades do futuro. É a experiência dos que construíram a base, aliada à visão moderna e às ferramentas que a nova geração traz. O futuro possível não é um destino distante, mas uma jornada que se inicia hoje, com a coragem de profissionalizar e proteger o que foi edificado com tanto esforço. Existem passos seguros para seguir por este caminho, vamos juntos!
(*) Cristhiane Brandão, conselheira de administração, consultora em governança para empresas familiares e vice-coordenadora geral do Núcleo Centro-Oeste do IBGC
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