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O cosmopolitismo de A quadragésima porta

Guido Bilharinho (*) | 17/04/2013 10:12

Com exceção da obra de Teresa Margarida da Silva e Orta (Aventuras de Diófanes, de 1752), de temática grega, clássica, e de um ou outro romance de capa e espada, de cunho meramente comercial, ou mesmo literário, mas, fraco, como Uma Lágrima de Mulher (1880), de Aluísio Azevedo, ou, ainda, Eulâmpio Corvo (1909) e a trilogia Heloísa d’Arlemont (1918/?), do pernambucano Zeferino Galvão (1864-1924), e início de Mana Silvéria (1913), do gaúcho Canto e Melo, a ficção Brasileira palmilha trilha única e comum quanto à localização geográfica, social e econômica da temática elegida, sempre restrita ao Brasil.

Essa, pois, uma das características preponderantes dessa ficção.

Por isso, o romance A Quadragésima Porta (1943), de José Geraldo Vieira (Rio de Janeiro/RJ, 1897 - São Paulo/SP, 1977), surpreende pelo seu cosmopolitismo, não reconhecido pelo Autor, que prefere, em nota introdutória, considerá-lo “tentativa não de romance cosmopolita, mas de encruzilhada ecumênica”, o que, no caso, vem a dar na mesma.
A surpresa, aqui, só é possível se decorrente da leitura planejada e cronológica, proporcionadora do impacto decorrente de imediatas observação e comparação.

E é justificável, porque esse livro inaugura, no Brasil, o romance cosmopolita de temática ecumênica. Conforme salienta Sérgio Milliet, em citação descontextualizada inserta na última capa da terceira edição (provavelmente de 1968, como se registra no colofão, já que a editora Martins omite a data na folha de rosto), “com este romance iniciamos uma nova etapa. Rompemos o nosso isolacionismo e entramos na agitação do mundo”, completando, hiperbolicamente, que “saímos da aldeia para a metrópole”, o que, esteticamente, é indiferente, bastando lembrar que Eça de Queirós, em A Cidade e as Serras (1901), percorre caminho inverso com melhor resultado.

Assim, o contato com essa obra é, pois, nessa perspectiva, impactante. Nesse caso, não em todos, reação obnubiladora da mente e perniciosa como base de raciocínio, análise e avaliação.

A inserção das personagens nas encruzilhadas geográficas do mundo e sua participação nos acontecimentos cruciais da História, levam, no caso, a obscurecer e mesmo camuflar as limitações, carências e artificialismo da obra. Diante de seu feerismo, característica notada por Ledo Ivo, também citado na última capa da 3ª ed., impressionados e dominados por ele, pode-se (e muitos o fizeram), superestimar o romance, a ponto de incluí-lo, frequentemente, entre os “dez melhores romances brasileiros”, conforme noticia a “orelha” da referida terceira edição. Ou de se dizer, como o fez Wilson Martins, citado aspeadamente na mencionada “orelha”, ser, esse, “um dos romances basilares da literatura brasileira, merecedor dum lugar entre as grandes obras de todas as literaturas”.

Todavia, A Quadragésima Porta, limado ou escoimado dessa tênue casca feérica, constitui romance frustrado, frustrante e irrealizado. Não são seus traços distintivos mais evidentes, como a colocação das personagens no olho do furacão da História (no caso, não por mera coincidência, mas, propositadamente, Primeira Grande Guerra, Revolução Soviética de 1917, primeiros anos da Segunda Guerra Mundial), que lhe poderão dar, a ele ou a qualquer outro romance, os predicados que não possui e que, para configurar obra de arte, obrigatoriamente deveria ter: estrutura romanesca e profundidade analítica. Ou seja, qualidade estética e verdade humana.

Nem um nem outro desses atributos permeiam o romance, que, desnudado das lantejoulas e enfeites pretensamente históricos, não passa de obra menor, episódica. E que, pelo seu patente artificialismo, nem ao menos alcança a feição documental, ficcionalmente ancilar.

Assim, despido das roupagens falsamente brilhantes e enfocado no que efetivamente importa, em se tratando de obra literária de ficção (linguagem, estrutura romanesca, consistência das personagens, autenticidade e profundidade humanas), e comparado com as obras-primas do romance brasileiro percebe-se, facilmente, sua insuficiência.
A linguagem e a estrutura constituem elementos congênitos e intrínsecos ao gênero. A realidade do ser humano é requisito essencial e elemento condicionante, cuja falta, ou precariedade, o desfigura e o descaracteriza. Ao ficcionista cumpre e compete detectar ou descobrir essa verdade substancial e criá-la artisticamente.

José Geraldo Vieira, autor, ainda, entre outros, dos romances A Mulher Que Fugiu de Sodoma (1931), Território Humano (1936), A Túnica e os Dados (1947), A Ladeira da Memória (1950) e Terreno Baldio (1961), não logra, em A Quadragésima Porta, alcançar qualquer das citadas qualidades, pelo que esse romance não se consuma como obra de arte, erigindo-se, no vácuo daí resultante, um monólito, como afirma, pretendendo elogiá-lo, o crítico Tulo Hostílio Montenegro, opinião também transcrita na última capa da terceira edição. Realmente um monólito e, como ele, uniforme e tedioso, mesmo que construído mediante linguagem desenvolta, de cunho, todavia, artificioso, como também artificiais são a estória e as personagens.

Em suma, A Quadragésima Porta é romance enganador como toda obra que flutua na periferia da realidade sem captar sua substância, mas aparentando fazê-lo.

(*) Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.

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