Romantização faz mal à saúde: quando idealizar se torna um veneno disfarçado
Vivemos numa era em que tudo é passível de ser estetizado: a dor, a solidão, os traumas, a ansiedade, os relacionamentos falidos, a correria do dia a dia. Há uma tendência crescente em transformar realidades difíceis em narrativas belas, quase poéticas. Frases como “é só uma fase”, “vai passar porque tudo tem um propósito” ou “no fundo, é lindo sofrer assim” são ditas como consolo, mas escondem um perigo silencioso: o da romantização da vida — e, sobretudo, do sofrimento.
Romantizar é revestir a realidade com um verniz de beleza que ela não tem. É fingir que o que machuca, na verdade, cura; que o que limita, ensina; que o que dói, engrandece. É transformar o caos em estética e esquecer de lidar com ele de forma real e prática. Embora esse movimento possa parecer inofensivo ou até “positivo”, ele é uma forma disfarçada de negação. E tudo que se nega, volta em dobro.
A romantização como forma de negação emocional
Quando idealizamos o sofrimento, deixamos de reconhecê-lo como ele realmente é. Ao invés de admitirmos que estamos cansados, adoecidos emocionalmente, sobrecarregados ou vivendo algo que nos faz mal, preferimos pintar essa experiência com cores suaves. Chamamos a insônia de “criatividade noturna”, a ansiedade de “energia acumulada”, a exaustão emocional de “guerreiro que não desiste nunca”.
Isso mascara a necessidade de ajuda, de mudança e de pausa. Romantizar é empurrar com palavras bonitas aquilo que precisa ser enfrentado com coragem. É trocar o enfrentamento pela estética, o cuidado pela narrativa inspiradora. E, no fim, quem sofre é o corpo, a mente e a alma, que gritam por uma escuta real, e não por mais uma legenda bonita para foto no Instagram.
O perigo de romantizar relacionamentos tóxicos
Um dos maiores campos de romantização está nos relacionamentos abusivos. Frases como “amar é sofrer”, “toda relação tem seus altos e baixos”, “ele faz isso porque me ama” perpetuam vínculos nocivos sob a ilusão do amor verdadeiro. Muitas pessoas permanecem presas a relações disfuncionais porque acreditam que o sofrimento faz parte do processo — que é bonito lutar até o fim, mesmo que o “fim” já tenha chegado há muito tempo.
Essa narrativa impede que a pessoa reconheça abusos emocionais, chantagens, dependência afetiva e desrespeito. Amar não é sobre resistir à dor, mas sobre partilhar leveza, cuidado e crescimento mútuo. Ao romantizar o amor como algo que exige sacrifício constante, estamos ensinando às pessoas que é preciso se machucar para merecer afeto. E isso não é amor — é autoviolência.
Romantizar a exaustão e a produtividade tóxica
Outra armadilha moderna é a romantização da produtividade. Quantas vezes já ouvimos ou dissemos frases como “durmo pouco, mas faço muito”, “me alimento mal, mas entrego tudo no prazo”, ou “não tenho tempo para mim, mas estou sempre ocupado”? Há uma idolatria disfarçada em torno do cansaço, como se ser produtivo a qualquer custo fosse sinônimo de sucesso.
No entanto, viver nessa lógica é ignorar os sinais do corpo, adoecer emocionalmente e perder de vista o que realmente importa. O esgotamento não deveria ser um troféu. A exaustão não é medalha de honra. É sintoma de uma vida que precisa urgentemente de revisão. E romantizar esse estilo de vida só perpetua a ideia de que o valor de alguém está atrelado ao quanto ela produz — e não ao quanto ela vive com qualidade.
Quando tudo vira “lição” e ninguém se permite sentir
Também há um discurso perigoso que transforma toda dor em “aprendizado”, sem dar espaço para sentir. É claro que podemos aprender com os acontecimentos difíceis, mas isso não significa que devamos pular o processo do luto, da raiva, da frustração ou da tristeza. A dor precisa ser validada antes de ser ressignificada.
Romantizar o sofrimento como uma “prova divina” ou como uma “experiência necessária” pode fazer com que as pessoas se culpem por não estarem aprendendo rápido o suficiente. Ou pior: pode levá-las a se manter em situações que causam sofrimento, acreditando que ainda não “evoluíram” o bastante. Isso gera culpa, pressão emocional e desconexão com o próprio sentir.
Romantização é fuga, não enfrentamento
A verdade é que a vida real é feita de imperfeições, dores, pausas, recomeços e também de momentos belos — mas que surgem da autenticidade, e não da ilusão. Romantizar tudo nos afasta da realidade e, portanto, nos afasta também de nós mesmos. Não é sobre viver em sofrimento, mas sobre permitir-se reconhecer o que está doendo, ao invés de pintar por cima com glitter emocional.
É preciso coragem para olhar a vida como ela é, sem floreios. Coragem para dizer: “isso aqui está ruim e preciso mudar”. Coragem para se afastar do que machuca, mesmo que pareça bonito por fora. Coragem para buscar ajuda, para parar, para repensar.
Viver é sentir, e não encenar
A romantização pode até parecer inofensiva, mas ela nos adoece aos poucos. Nos afasta da autenticidade, da escuta interna e da possibilidade de mudança real. Em vez de transformar o sofrimento em poesia, talvez devêssemos transformá-lo em movimento. Movimento de cuidado, de escolha, de transformação.
Não se trata de ver o mundo de forma negativa, mas de enxergá-lo com honestidade. E a honestidade emocional é o primeiro passo para uma vida mais leve, mais real e mais saudável.
Porque, no fim das contas, a realidade — com tudo o que ela tem de imperfeita — é o único lugar onde a vida realmente acontece.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia
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