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O ENEM e as desigualdades sociais

Matheus Monteiro Nascimento (*) | 16/03/2021 08:12

Foi a partir do ano de 2009, com a criação do Sistema de Seleção Unificado (SiSU), que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) começou a ter maior notoriedade no cenário nacional. Isso porque o desempenho na prova passou a ser critério de seleção para o ingresso no ensino superior de instituições públicas. Desde então, inúmeros estudos têm utilizado o ENEM como indicador das desigualdades educacionais e sociais no contexto brasileiro.

Em pesquisas realizadas com colegas do Programa de Pós-graduação em Ensino de Física da UFRGS, mostramos que o discurso que enaltece o exame como processo seletivo mais democrático é totalmente falacioso. Separando os candidatos em grupos constituídos por condições materiais e simbólicas semelhantes, notamos que, assim como nos vestibulares tradicionais, o acesso ao ensino superior público ainda permanece inatingível para grande parte da nossa população. Alguns podem argumentar que essa é a função de um exame de seleção e que por isso o ENEM está cumprindo muito bem o seu papel. Mas a história não é tão simples.

Desde meados da década de 1960, especialmente com os estudos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, sabemos que a escola é um espaço que tende a reproduzir e legitimar as desigualdades sociais. Para o autor, a educação formal tem menos o papel de transformação e democratização das sociedades do que de legitimação dos privilégios sociais. Os estudantes chegam à escola com uma série de disposições para agir que são adquiridas no seu ambiente social e familiar, altamente influenciado por uma posição na estrutura social. Considerando as múltiplas formas de socialização, é natural que as crianças desenvolvam condutas individuais muito distintas. O problema é que na escola há uma tendência de se valorizarem justamente hábitos e comportamentos que são adquiridos, mais provavelmente, nos ambientes das elites sociais e econômicas. Dessa forma, para algumas crianças o ambiente escolar é uma extensão da própria educação familiar, enquanto para outras é algo distante e até mesmo assustador, o que acaba se refletindo nas possibilidades de êxito ou fracasso escolar.

Voltando ao ENEM, observamos que a prova justamente reflete a desigualdade da sociedade que se reproduz no ambiente escolar. Estudantes de origem socioeconômica favorecida, em geral que passaram por escolas privadas e cursos de idiomas e pré-vestibular, tendem a ocupar as vagas nos cursos de graduação de maior prestígio e retorno financeiro, mantendo, assim, o abismo social tão presente em nossa sociedade.

O ano da pandemia da covid-19 tende a agravar ainda mais esse cenário. De acordo com dados do ENEM de 2018, aproximadamente setenta por cento de estudantes das mais baixas faixas de renda não possuem computador em casa e cinquenta por cento não possuem acesso à internet. O atual governo federal deveria atender aos milhares de pedidos realizados pelos postulantes a uma vaga no ensino superior e cancelado o exame nesse ano, o que acabou não se confirmando. O reflexo dessa decisão foi a maior abstenção da história do ENEM, com mais de cinquenta por cento de ausentes nas provas.

Não existe solução simples para o problema do acesso ao ensino superior público, uma vez que temos muito mais candidatos(as) do que vagas disponíveis. Sem dúvida, a forma mais igualitária para o preenchimento dessas vagas seria o sorteio, como realizado no Colégio de Aplicação da UFRGS, por exemplo. Difícil seria, contudo, emplacar essa ideia numa população com fortes tendências meritocráticas. Por isso, precisamos apontar outros caminhos para tentar reduzir as desiguais condições de acesso ao ensino superior público do Brasil.

Nossas pesquisas apontam algumas possibilidades, mas que demandam reformulações estruturais de grande porte da educação brasileira. Em tempos de militarização das escolas públicas, é fundamental revelar o sucesso de um modelo de escola presente há mais de uma década no país.

Identificamos que estudantes egressos de Institutos Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, instituições criadas a partir de política pública instaurada no ano de 2009, obtêm desempenho nas provas do ENEM muito próximo ao de estudantes de escolas privadas. No entanto, o perfil socioeconômico desses(as) egressos(as) é muito próximo ao perfil de estudantes das escolas estaduais, revelando um importante papel social desempenhado pelos institutos federais.

E qual a “fórmula” desse sucesso? Boas condições de trabalho para docentes, salários justos, espaços físicos de qualidade, estrutura curricular diferenciada, entre outras tantas razões. O investimento massivo nessa política, em nossa opinião, pode contribuir para a redução de desigualdades sociais, uma vez que qualifica a educação básica e permite uma disputa mais justa pelo acesso ao ensino superior público no Brasil.


(*) Matheus Monteiro Nascimento é professor do Instituto de Física e do Programa de Pós-graduação em Ensino de Física da UFRGS.

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