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O sangue de um poeta, a transgressão do real

Por Guido Bilharinho (*) | 19/03/2012 14:29

Em geral, tanto o leitor como o espectador querem usufruir de uma estória, em livro, filme ou peça teatral. Não uma estória qualquer, mas, a que se submeta, quanto à forma, à narração convencional e comportada e, no que tange ao conteúdo, à linearidade e superficialidade que a recheiem com aspectos espetaculosos, intrigantes, superficiais.

Todavia, é possível fazer-se filme de ficção que não contenha nenhuma dessas características.

É o que ocorre, por exemplo, com O Sangue de Um Poeta (Le Sang d’Un Poète, França, 1930), de Jean Cocteau (1889-1963).

Seu tema concreto resume-se a ferimento acidental ocorrido na mão de artista plástico.

Só isso, contudo, vincula a narrativa à realidade. A partir daí e do próprio acidente desconecta-se a ação do contexto real para adentrar o mundo maravilhoso e ilimitado da imaginação alógica e irracional. Nada mais prende ou enleia a personagem numa teia ordenada de relações, porque desde então está-se mergulhado no mundo do mito e do imprevisível.

Não havendo restrição alguma ao poder do imaginário, tudo é possível, todas as opções são válidas, repousando o valor do filme na utilização consciente e estética de recursos cinemáticos e picturais.

No caso, uns e outros apresentam-se articulados em alto nível de concretização formal e temática, facetas que se conjugam e interagem como síntese de projeto artístico-cinematográfico meditado e ousadamente elaborado, em que se aplicam os preceitos surrealistas, que não se conformam nem se atêm aos lindes da materialidade, extrapolando suas fronteiras, conquistando e incorporando novas dimensões estruturais, criando outro universo, no qual acontece justamente o que é impraticável ou impossível ocorrer no mundo real.

O projeto surrealista, no entanto, não tem como dispensar os elementos corpóreos e palpáveis que compõem a realidade.

Todo o insólito e extravagante que constitui o conteúdo da proposição é, pois, construído com o material existente, comum e prosaico, no caso, a estátua, a parede, o espelho, a porta, a fechadura, o teto, o desenho.

Desse condicionamento, no entanto, não se pode nem se consegue fugir. A diferença, pois, é de se ter ou não liberdade, audácia e criatividade em seu uso, para, além da matéria, seus limites e convenções, abusar-se de suas propriedades e possibilidades.

O uso é sempre convencional, comportado e acanhado. O abuso é liberação, criação, invenção, quebra dos grilhões impostos pela concretude do real.

À evidência, que proposta desse jaez encerra riscos e exige, além de destemor, fundamentação teórica e conhecimento da natureza e da finalidade da arte, sem o que toda produção não passará de tentativa canhestra de fazer o diferente quando não se estará fazendo mais do que o despropositado.

Cocteau, em seu filme, domina e utiliza com conhecimento de causas e efeitos os fatores condicionais (a materialidade das coisas) e incondicionais (a imaterialidade do pensamento e a imponderabilidade da imaginação) para fundamentar e realizar bela aventura artística, produto de razão, inventividade, arrojo e liberdade criativa. Um artista sem medo de errar.

Conquanto o filme tecnicamente não seja mudo (com esparsas narrações do próprio cineasta), é estruturado como se o fosse, com privilegiamento e realce da postura e dos movimentos dos atores integrados em décors artisticamente elaborados, compondo imagens esteticamente construídas, dispensada a dialogação.

(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)

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(*)Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, foi candidato ao Senado Federal e editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e história regional.

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