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O silêncio dos Cem Mil

Por Paulo Nassar (*) | 24/10/2025 08:30
O silêncio dos Cem Mil
Passeata dos Cem Mil na Cinelândia, centro do Rio, em 1968 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

A fotografia de Evandro Teixeira, em minha parede, não é apenas um registro da Passeata dos Cem Mil. É uma presença. Ela me observa, mais do que eu a observo. De algum modo, ela insiste em me perguntar coisas: o que você vê agora, aos 73 anos, que não podia ver aos 15, quando era apenas um moleque atravessado pela esperança e pelo medo?

Na imagem, não há som. Nenhum cântico, nenhum brado, nenhuma sirene. O silêncio parece tomar conta do instante. Um silêncio que não é vazio, mas condensação: cem mil pensamentos retidos, cem mil olhares projetados para pontos que não alcanço. A fotografia não mostra o rumor, mostra o recolhimento. E, ainda assim, cada rosto me parece falar.

A faixa solitária — “Abaixo a Ditadura. Povo no Poder” — rompe esse silêncio com a economia da palavra. Em meio a milhares de corpos, é quase um sussurro que se expande em grito histórico. E penso: por que tão poucas faixas? Talvez porque a força não estivesse na multiplicidade de slogans, mas na presença maciça e inescapável do corpo coletivo.

Quando me detenho nos detalhes, encontro narrativas secretas: a moça de cabelo liso que poderia ser minha colega de escola; o menino franzino, quase criança, que talvez não tenha sobrevivido ao tempo; o homem de chapéu, o sujeito de terno e gravata que parecem deslocados — ou talvez fossem indispensáveis para lembrar que a resistência não tinha um único rosto. É como se cada anônimo pedisse para ser decifrado.

Paradoxalmente, o preto e branco da foto não acentua o drama, mas cria sobriedade, uma espécie de eternidade sem gritos. A imagem é mais forte que o acontecimento, porque o acontecimento se perdeu no tempo, mas a imagem ficou. E ao fixar-se na parede de minha casa, fixou-se também na parede da minha memória.

A fotografia não me deixa em paz. Ela me olha e me julga. Pergunta: “o que fizemos com aquele instante?”. E mais: “o que você faz hoje com o legado de 1968?”.

Não há resposta fácil. Apenas o reconhecimento de que certas imagens deixam de ser documentos e se tornam oráculos. Evandro Teixeira não apenas clicou um acontecimento: congelou um silêncio que ainda ressoa.

(*) Por Paulo Nassar é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.