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Professores críticos e criativos versus o modelo educacional do novo governo

Por Carlota Boto (*) | 14/02/2019 08:55

Na primeira quinzena de governo, fomos surpreendidos por uma série descontínua de informações: “menino veste azul e menina veste rosa”; o problema da ciência decorreria do fato de ela ser realizada por cientistas; deveria haver revisão dos livros de história em relação ao período militar no Brasil; o Enem teria o defeito de supostamente retirar o jovem da cidade de sua família… Enfim, uma plêiade de julgamentos sofríveis.

No entanto, no que diz respeito ao ensino, um dos assuntos que mais chamam a atenção é o fato de, com respaldo do presidente da República, se pretender banir Paulo Freire das escolas, bem como o que tem sido qualificado por doutrinação ideológica. Não é preciso dizer aqui que Paulo Freire nunca doutrinou ninguém, e que também não fazem isso os milhares de professores progressistas que compõem as redes públicas e mesmo o ensino privado em todos os seus níveis.

Com John Passmore, podemos dizer que a habilidade da crítica é um instrumento absolutamente diverso da doutrinação. O professor que desenvolve o exercício da crítica criativa não é o mesmo que se propõe a doutrinar. O espírito crítico – incentivado pelo educador comprometido com sua sociedade e, sobretudo, com os setores mais desfavorecidos dessa sociedade – não poderá ser colocado a serviço do mal. Estimular no aluno o espírito crítico é atividade completamente oposta à doutrinação. No caso desta última, o sujeito é preso por respostas estereotipadas, atadas ao roteiro de uma doutrina qualquer.

O debate crítico é outra coisa: significa estimular os alunos a manifestarem suas perspectivas perante os fatos e fundamentá-las com juízos cabíveis. É claro que, para o bom exercício da competência crítica, é imprescindível o prévio conhecimento da matéria a ser julgada. Nesse sentido, o papel da instrução é essencial.

Uma das tarefas do educador – ainda segundo John Passmore – é “intrigar o aluno”, mediante a proposição de questões que exijam o poder de inferência com dados da realidade. O mestre, assim, deveria apresentar problemas cuja solução é controvertida; questões que, no limite, se prestem à divergência. O educador, nesse sentido, proporciona o contato com a curiosidade, com o questionamento, com a dúvida. Ele intriga seus educandos.

Como diz Passmore, a diferença entre o educador e o doutrinador reside no fato de este último considerar que as normas são inerentes à natureza das coisas. Já o educador é aquele que aplaude a dúvida, o desconcerto, o debate crítico sobre as próprias normas vigentes. Há concepções diversas sobre a natureza do conhecimento. O doutrinador entende que o conhecimento é a verdade última do ser.

O professor consciente de seu trabalho reconhece que todo saber é sujeito ao crivo da crítica, e que pode ser confrontado com a possibilidade de sua refutação. Em termos metodológicos, assim como por seus suportes teóricos, o doutrinador e o professor são sujeitos opostos entre si e até irreconciliáveis… Até porque – como bem demonstrou Azanha – em qualquer ato educativo autêntico repousa a esperança de possibilitar a modificação humana. Essa esperança é o que confere significado ao ato de educar e de ensinar. E é por meio dela que se constrói a pedagogia crítico-criativa.

Um exemplo de pedagogia crítica e criativa foi a prática educacional de Paulo Freire. Apreender os pressupostos de seu ensino requer, entretanto, conhecer os dois livros que, a meu ver, talvez melhor sintetizem os princípios que nortearam o pensamento pedagógico crítico do educador no decurso de sua trajetória: A educação como prática de liberdade e Pedagogia do oprimido. Ambos os textos datam dos anos 60 e estão absolutamente enraizados na experiência que Paulo Freire desenvolvera com seus círculos de cultura.

Em ambos os casos, um preceito claramente expresso nas duas obras chama a atenção: a tolerância e a abertura ao pensamento do outro; inclusive daqueles que pensam de maneira diferente… Isso nos parece essencial. Paulo Freire adverte contra todos os que reagem de maneira sectária ao pensamento do oponente. Sublinha ele que o sectário estaria, à partida, equivocado, posto que se supõe apto a frear o tempo, a domesticar a história.

Pela reflexão de Paulo Freire, o ser humano tem a vocação para a liberdade e para a libertação. Antes de tudo, a ideia de uma pedagogia do oprimido supõe o encontro do povo, a formação, a humanização e a conscientização. A tomada de consciência do povo sobre seu papel na história significaria uma ação coletiva sobre a própria opção histórica. Paulo Freire, acerca disso, já advertia os contemporâneos para o opressor que habita o coração do oprimido.

Mais do que isso, para ele, seria a autolibertação das pessoas que possibilitaria também a libertação dos opressores. Nessa medida, ao educador, caberia dialogar com o povo sobre sua própria ação, de maneira a possibilitar que sua consciência de si viesse dialeticamente a ser transmutada em uma consciência para si. Por tal razão, a ideia de diálogo é, para a pedagogia de Paulo Freire, fundamental. A história de vida – em um tempo no qual a pedagogia ainda não falava disso – ou a autobiografia individual e dos grupos seria o ponto de partida desse modo de compreender a educação e o intercâmbio de culturas.

Ao construir novas referências que traziam historicidade ao ato de ensinar e ao gesto de aprender, Paulo Freire demarca sua distância daquilo que compreende como concepção bancária e domesticadora da educação: aquela que se propõe a transmitir conhecimentos alheios da realidade e desconectados do interesse do aluno. Esse modelo pedagógico, fundado na sonoridade da palavra e na força mecânica de seu conteúdo, não possui, em si, qualquer potencial de emancipação.

O educando, nesse registro da pedagogia tradicional, apenas memoriza e reproduz de maneira acrítica aquilo que ficou arquivado pela repetição. Em contrapartida, haveria outra acepção de educação, agora como prática de liberdade. Sob essa perspectiva, homem e mundo se fazem a um só tempo e a consciência do mundo seria a própria revelação de sua existência.

Acerca da concepção de cultura de que partilha, Paulo Freire critica as ideias inertes e desencarnadas, as quais, ao serem recebidas pela mente, não são, de fato, por ela apropriadas, como instrumento para mobilização de outros conhecimentos, de novas descobertas. Paulo Freire também faz a distinção entre teoria e bacharelismo.

Para ele, o problema da educação brasileira não era o de ser demasiadamente teórica, mas o de se resumir a uma verbosidade oca, que não tinha qualquer inserção na realidade. Para Freire, ao contrário, a educação seria, antes de tudo, um ato que não pode fugir a seu compromisso com os excluídos. Como atitude de diálogo, a educação requer partilha, discussão, troca de ideias, debate. Assim concebida, a educação procura transformar a realidade em que atua.

Ao descrever seu próprio método de alfabetização, Paulo Freire ressaltava que sua intenção era, a princípio, a de criar uma alternativa aos métodos que apenas tornavam mecânica a aquisição e o domínio da língua, partindo com isso de vocábulos que não eram sequer reconhecidos pelo educando. A metodologia que contrariamente a essa se procurava então desde o início – como assegura o próprio educador – era a de fazer coincidir o conteúdo da aprendizagem com o próprio processo de aprender. Partia-se, então, do sentido e criava-se um modo libertário para fazer aflorar esse sentido.

A pedagogia, por suposto, deveria então ser crítica e criativa, tanto no conteúdo quanto na metodologia adotada. A primeira fase do trabalho era a da descoberta do universo vocabular – palavras que viessem carregadas de sentido existencial para aquele grupo específico com o qual se pretendia trabalhar.

Aqui se procuraria também os falares típicos regionais, palavras que se ligassem à experiência daquela população pretendida. A partir do levantamento preliminar – que coincide, na maioria das vezes, com o primeiro contato do educador com o grupo – procurar-se-ia selecionar as palavras, partindo de sua complexidade: tanto em termos silábicos, quanto fonéticos ou mesmo no tocante a seu conteúdo prático.

Projetava-se uma situação-problema com a palavra geradora escolhida para criar o debate. As circunstâncias criadas deveriam tratar de objeto identificado pelo grupo – situações existenciais típicas do mundo do trabalho e da cultura daquela localidade específica – para iniciar um percurso daquilo que Paulo Freire nomeava “descodificação”. Quando a análise é considerada esgotada, o educador sugere que se visualize a palavra geradora, para – logo em seguida – apresentá-la dividida em sílabas para que se reconheçam as partes.

Na sequência, caminha-se para a identificação das famílias silábicas que deverão ser então registradas. As sílabas, recompostas, formariam novas palavras, as quais agregariam novos significados. E, paulatinamente, o sujeito conseguiria formar as frases que demonstrassem seu domínio da atividade leitora.

Qualquer que seja nossa apreciação sobre o método de Paulo Freire, uma coisa é inequívoca: sua rapidez e eficácia foram reconhecidas internacionalmente por teóricos e analistas. Além disso, tratava-se de um modelo de pedagogia crítica, voltada exatamente para desconstruir possíveis práticas de doutrinação de todos aqueles que, apegados ao senso comum, acatam regras e modos de ser como se eles fossem únicos e inamovíveis. Portanto, contra a doutrinação ideológica que parece nos cercar, no espectro político da direita, é preciso reconstruir, reinventar Paulo Freire. A atualidade desse debate fala por si.

(*) Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP.

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