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Quem disse que estabilidade reduz desempenho?

André Marenco (*) | 23/05/2022 08:30

A estabilidade no serviço público tem sido tema recorrente na agenda política brasileira há pelo menos três décadas. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20 – a mais recente tentativa de alterar o art. 37 da Constituição Federal – propôs substituir o atual Regime Jurídico Único por diferentes vínculos como cargos típicos de Estado e cargos de prazo indeterminado, bem como submeter a efetivação a um prazo de experiência, no qual apenas uma parcela poderia ser integrada com base em avaliação.

Inicialmente, um pouco de história. O modelo profissional de administração pública tem seus marcos fundacionais na virada do século XIX para o XX. Nos Estados Unidos, o Pendleton Act, de 1883, introduziu a obrigatoriedade da realização de concursos públicos para o recrutamento de funcionários na administração federal norte-americana, marcando uma reversão no spoil system inaugurado por Andrew Jackson durante sua gestão na Presidência (1829/37). Até então, presidentes dispunham da prerrogativa de remover e substituir todos os funcionários a cada mandato governamental.  A ele se seguiu o Lloyd-La Follette Act (1912), que introduziu medidas de proteção contra a demissão de servidores civis. No Brasil, a Lei 284/1936 foi a pedra fundamental na organização das carreiras públicas; a Constituição de 1937 introduziu concursos públicos; e o Decreto-Lei 579/1938 criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), encarregado de profissionalizar a administração federal brasileira. Finalmente, a Constituição Federal de 1988 consolidou esse modelo profissional de administração, alicerçado em concurso público e estabilidade.

A racionalidade desse tipo de burocracia profissional estaria fundada, segundo Max Weber, em dois pilares: (i) recrutamento meritocrático combinado à previsibilidade de carreiras profissionais de longo prazo, conferindo autonomia a servidores em relação a ciclos governamentais, e (ii) a observância, pelo funcionário de um conjunto de protocolos ex-ante, como normas escritas, hierarquias funcionais e impessoalidade, reduzindo a discricionariedade em suas ações e decisões e ampliando a eficiência em seus resultados, baseados em critérios e escolhas técnicas.

As reformas administrativas dos anos 1980 e 1990, orientadas pelo New Public Management (NPM), pretenderam sinalizar o nadir dessa burocracia weberiana. Dessa forma, trocam-se controles ex-ante (normas detalhadas) por ex-post (avaliação de desempenho); supervisão hierárquica por competição entre agências; e carreiras de longo prazo por flexibilidade na seleção e substituição de funcionários através de contratos temporários e incentivos baseados em profit-seeking.

Há um diagnóstico convergente acerca dos resultados limitados das reformas gerenciais, decorrente da contradição entre as metas traçadas: redução de gastos públicos e disciplina fiscal paralelamente a ganhos em governança. Enquanto a primeira implica downsizing, corte de agências e programas e reorganização de estruturas, o objetivo de governança implica delegação de autoridade, descentralização orçamentária e de pessoal e flexibilização organizacional, gerando curtos-circuitos entre os dois objetivos.

Da mesma forma, a troca de “normas” por “resultados” como parâmetro para avaliar a conduta de funcionários públicos não gerou respostas para problemas efetivos a ela associados, como o que deve ser medido (produtos versus impactos), em qual escala de tempo (curto ou longo), com sanções positivas ou negativas.

Um estudo comparativo de Christopher Pollitt and Geert Bouckaert mostra quadro mais próximo à variação do que a convergência de modelos nas reformas gerenciais dos anos 1980 e 1990. Enquanto países de tradição anglo-saxã, como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, promoveram reformas em que predominam os traços da New Public Management, as mudanças na administração pública na Europa continental e na União Europeia (UE) – como França, Alemanha, países escandinavos – resultaram em modelo descrito pelos autores como New Weberian States, combinando os elementos de carreiras profissionais, procedimentos de mérito, com a introdução de controles ex-post, como contratos de resultados, avaliações e transparência perante os cidadãos.

Experiências como a do Sistema de Alta Dirección Pública (SADP), criado no Chile em 2003 e reforçado em 2016, podem constituir referências importantes para o aperfeiçoamento da administração pública. O SADP buscou equacionar nomeações políticas com procedimentos meritocráticos de seleção para o alto escalão governamental. Com ele, presidentes, ministros e secretários podem indicar quadros de sua confiança política, desde que escolhidos exclusivamente em um Banco de Postulantes, com candidatos submetidos previamente a provas e exigências técnicas. Dessa forma, concursos produziram listas de aprovados, restringindo a discricionariedade das autoridades de governo a esses nomes – ou a sua posterior demissão. Essas listas contêm de 3 a 5 indicações para cada cargo de alto escalão e são elaboradas pelo Consejo de Alta Dirección Pública (CADP).

Críticos da estabilidade na administração pública repetem, como mantra, ser necessário conferir maior flexibilidade como condição para alcançar maior qualidade no serviço público. Mas, afinal, seria correto afirmar que o modelo profissional de burocracia weberiana estaria esclerosado? Existem evidências para amparar essa suposição? Não é o que os dados parecem indicar. Considerando informações do Quality of Government Dataset 2022, podem-se avaliar os efeitos de diferentes modelos de administração governamental sobre a qualidade de políticas públicas em 79 nações. A partir do Índice de Profissionalização – resultante de uma escala que mede seleção meritocrática através de concursos públicos, estabilidade no cargo e patronagem –, pode-se verificar relação estatisticamente significativa e robusta de burocracias profissionais com maior accountability e transparência nos órgãos públicos, menor percepção de corrupção, maior integridade no serviço público, maior desempenho econômico medido por variações no PIB per capita e efetividade no desempenho governamental.

(*) André Marenco é professor titular do departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Política (NUPERGS).

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