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Sobre a necessidade de se dançar Madonna antes de escrever para o jornal

Cleiton Zóia | 05/10/2015 09:43
Vamos dançar mais e atacar menos!
Vamos dançar mais e atacar menos!

Sobre a verdadeira ideologia de gênero: a pluralidade religiosa que TRANSborda

À Satine

Satanás não é o único demônio que bafeja, do mesmo modo que o Deus Bíblico não é o único a habitar o imaginário teológico das pessoas. Hija de Perra, em seu discurso para a Marcha da Diversidade Sexual de 2013 (Arica, Chile), nos recordou que “antes da chegada dos conquistadores, os indígenas que viviam na América Latina não concebiam, nem imaginavam os conceitos sociais atualmente herdados da Europa, estávamos livres desses atrapalhados pensamentos. Por exemplo, Viracocha, o Deus criador da cultura Inca, que está em todas as representações do mundo Andino, inclui, em si mesmo, atributos femininos e masculinos, era um deus andrógeno; para os Aimarás, o masculino e feminino coexistiam numa mesma pessoa”. Nem vamos tocar no fato de Oxum sentir atração por Iansã e que, no Brasil e no Mato Grosso do Sul, do ponto de vista legal, deve existir liberdade religiosa.

Gostaria muito de entender a ideia de ideologia de gênero empregada por esses que temem ao demônio. Eles parecem utiliza-la para descrever teorias que denunciam, agora sim, a verdadeira ideologia de gênero: aquela que garante salários desiguais para as mulheres, a exclusão das crianças que não são como as outras, a invisibilização das minorias no currículo escolar, a restrição da ideia de família, a construção de modelos de gênero violentos que separam o mundo entre azul e rosa e tudo aquilo que transbordar a essas fronteiras, para eles, me parece, deve ser pintado com vermelho de sangue, pois não suportam a visão daquilo que é potente e foge ativamente das normas. A maioria é estúpida, alguns têm má fé mesmo e, por isso, insistem em descaracterizar, de maneira tão grosseira, lutas e teorias que pretendem desestabilizar algumas das normas que produzem violências cotidianas.

Basta uns minutos no interior de um escola e o gênero salta aos olhos e, se demorarmos muito, se inscreve na nossa própria pele. Quase tudo nela tende ao binarismo. Cansado das sala dos professores do IFMS de Coxim, ainda quando estávamos sendo recebidos pela Escola Estadual Padre Nunes – nossa sede provisória naquela ocasião -, resolvi observar as crianças em seu horário de recreio. Uma brincadeira era recorrente, um grupos de meninas empurravam alguns meninos para o banheiro feminino, o inverso era raro. Sobre o quê essa simples brincadeira opera? Sobre o gênero e a norma binária que determina sua produção. Não imagino que as crianças das séries iniciais já tenham lido Butler ou Preciado e saibam o sentido da palavra ideologia, porém sabem qual é a verdadeira ideologia de gênero, prova disso é que atuam sobre ela e a utilizam como mecanismo de punição, ser jogado no banheiro do gênero feminino, dentro do atual regime de produção de gênero, é motivo de vergonha.

Em 2012 fui convidado a participar do Point T. Nesse evento, voltado à comunidade de pessoas trans do MS, além das palestras sobre cuidados com a saúde, dos estudos sobre políticas públicas para a população trans, das apresentações culturais, aconteceu a melhor de todas as coisas, o convívio. Pude conhecer uma série de mulheres trans que traçavam as linhas das suas vidas na geografia sul- mato-grossense. Dentre elas, Satine foi aquela que mais me marcou. Dividimos o quarto e tínhamos dificuldade para chegar às atividades do evento pela manhã, pois durante à noite ficávamos conversando sobre teoria queer e vida. Ela era leitora de Precido, tinha um namorado lindo, cursava mestrado em Antropologia na UFGD e fora ao Ponti T com a finalidade de palestrar.

Uma pessoa trans é aquela pessoa socialmente obrigada a viver o que há de pior nas normas de gênero, pois, por todos os lados, as TRANSborda e é violentada por isso. Satine era assim, transbordante. Por transbordar ela sabia o que era não caber dentro disso que, para barrar o direito à autonomia, chamam natureza e a ela relacionam o estático, esquecendo que a natureza é movimento intensivo. Na noite que antecedeu sua palestra, Satine estava indignada com os dados de uma pesquisa publicada em 2009 e que, em porcentagem, procurava traduzir o preconceito das/os 18, 5 mil entrevistadas/os, 87% delas/es demonstrou algum grau de preconceito contra homossexuais. Sua indignação estava em que os dados não davam conta da dimensão das violências nas quais as pessoas trans são, ainda hoje, socialmente constrangidas a se constituírem.

Horas antes de sua palestra, seu principal problema era o de não falar em nome de ninguém, Satine tinha consciência da singularidade de sua própria existência de modo que sabia ser a transexualidade uma ideia tão abstrata quando a de Cissexualidade, não ignorava com isso a possibilidade de um uso político da identidade. Sua experiência escolar foi politicamente traumática, era perseguida por grupos de pessoas que a xingavam, era impedida de usar o banheiro conforme o gênero com o qual se identificava, era constrangida com um nome masculino que não lhe cabia, era obrigada a viver toda sorte de preconceitos pelo simples fato de transbordar às normas de gênero que os escolares do ensino fundamental da Escola Padre Nunes, e de tantas outras escolas do Mato Grosso do Sul, conhecem tão bem.
Infelizmente perdi as notas de sua palestra, mas lembro que, depois dela, para ter o direito de ser quem ela era, Satine foi cumprir mais um dos protocolos psi. Voltou com muita raiva dessa consulta, também ali fora submetida às normas de gênero e constrangida a corresponder a uma idealização de mulher. Em uma cirurgia estética ela faleceu.

Satine era fã de Madonna, sabia muito bem What It Feels Like For A Girl e qual era a verdadeira ideologia: aquela que usa o gênero para oprimir as mulheres, sejam elas trans ou não, e para punir toda pessoa que escapar às falsas ideias de gênero e sexualidade que povoam a cabeça dos analmente castrados, dos incapazes de suportar o transbordamento da vida e falam em nome da religião esquecendo a existência da pluralidade religiosa.

*Cleiton Zóia leiton Zóia Münchow é dissidente sexual, membro do coletivo Casa da Diferença, vegetariano, graduado em filosofia (UFpel) e mestre em filosofia moderna e contemporânea (UFpr), doutorando em Educação (UFpr), membro do LABIN - Laboratório de Investigação em corpo, gênero e subjetividade na Educação (CNPq/UFPR), estuda filosofia da diferença e teoria queer e é docente efetivo do IFMS-Coxim desde 2010. O presente texto é resposta ao artigo “Ideologia de Gênero” e bafo de Satanás:

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