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Vidas LGBT importam: 50 anos em movimento

Guilherme R. Passamani (*) | 28/06/2019 06:20
Bandeira do arco-íris transformada em símbolo da população LGBT.
Bandeira do arco-íris transformada em símbolo da população LGBT.

Há 50 anos, em um pequeno bar de Nova Iorque, nascia o moderno movimento LGBT. A rebelião de Stonewall, como ficou conhecido aquele evento de enfrentamento entre parte da comunidade LGBT da cidade, sobretudo travestis, bichas pretas, latinas e pobres, contra a polícia e suas arbitrariedades, completa 50 anos. Há conquistas nesse cinquentenário. Mas há muito sangue. E ainda falta muito a se percorrer rumo à cidadania plena.

É preciso, principalmente em nossa terra brasilis, que ainda parece adormecida em berço esplêndido, repetir, ininterruptamente, que as vidas LGBT importam. Que a noção de cidadania precisa extrapolar a binaridade das identidades de gênero e as poucas variações normalizadas de orientação sexual. É preciso reconhecer o enorme mosaico de dissidências que compõe a humanidade. Porque a diferença é o tempero que colore e dá graça à vida.

A bandeira do arco-íris, transformada em símbolo da população LGBT e que retrata a diversidade de categorias ali abarcadas, em países como o Brasil, está suja de sangue. Sangue de vidas LGBT esquartejadas, decapitadas, esfaqueadas, baleadas, estranguladas, asfixiadas, estupradas. Sempre às dezenas, sempre com requintes de crueldade. Não basta matar. É preciso matar e humilhar. Porque não se mata uma. A intenção é matar todas essas vidas nefandas. Tal como as execuções sumárias e exemplares que a história é sintomática em não nos deixar esquecer, a vida de muitas LGBT está sempre sob perigo. Na corda-bamba desta vida equilibrista, um deslize, uma virada de mão, um olhar lascivo, um beijo, um abraço e um carinho pode representar o fim da linha.

Por conta do perigo que é ser percebida como LGBT no Brasil, há um esforço enorme em permanecer no armário, seguro por portas bem fechadas. Porque, para uma vida fora do armário, exige-se resistência e enfrentamento constantes. Nós, bichas brancas, um pouco masculinas, de classe média, escolarizadas, protegidas por um título de doutor em uma sala confortável na universidade, somos exceção diante de uma regra, extremamente, desfavorável. Ainda assim, precisamos resistir e sobreviver em um universo, o da produção de conhecimento, que é marcado pela desqualificação do nosso trabalho, uma vez que a ciência também é, sobremaneira, estruturada a partir de padrões heteronormativos.

No entanto, é preciso que nossos privilégios sejam colocados em perspectiva. E que as vozes e os corpos resistentes das bichas pretas, afeminadas e da periferia sejam ouvidas e vistos. É preciso que as travestis siliconadas pelas bombadeiras, que nunca chegaram perto de uma prótese, elas que usam perucas velhas, compradas em liquidação, cujas roupas estão fora moda, que não conseguem aquendar a neca, cuja masculinidade é indisfarçável: é preciso ouvir e aprender com elas. Até porque, foram essas pessoas que apanharam e bateram naquele 28 de junho de 1969 em Nova Iorque. São elas que seguem apanhando, batendo e morrendo, hoje, nas ruas de Campo Grande, para que as pocs de classe média (brancas e universitárias), para que as marombadas das academias (discretas e fora do meio) possam gozar os ares das conquistas, que para as primeiras talvez nunca cheguem.

São tempos de algumas conquistas. O Supremo Tribuanl Federal acaba de equiparar a LFBTfobia ao crime de racismo. Isso precisa ser comemorado. Houve muita luta do movimento social para que isso ocorresse. Mas é preciso também ser lamentado. Pobre o país que ainda precisa assegurar que as pessoas sejam respeitadas nas suas diferenças, porque outras pessoas não entendem que pessoas são diferentes. E precisam ser respeitadas por isso. Pobre país que ainda precisa punir pessoas porque pessoas não respeitam pessoas. Por trás de todo a LGBTfobia é bem possível que exista muita misoginia. Há um ódio e um despreso às mulheres. Porque não há LGBTfobia se não existir machismo.

Em vista disso, se há conquistas, o tempo é, no entanto, de resistência. Profunda resistência. Dentro e fora da universidade. Dentro e fora da escola. Dentro e fora das igrejas. Dentro e fora das famílias. Dentro e fora do parlamento. Porque as LGBT jamais voltarão para o armário. Estamos longe, bem longe, de uma “ditadura gayzista”.

E não é para tanto. Mas estamos muito próximos de um pensamento fascista, excludente, misógino, lgbtfóbico, machista, racista, classista. É preciso enfrentar tudo isso. Porque a sociedade é plural e essa pluralidade é, constantemente, atacada pelos empreendedores morais do pensamento único que espalham, por meio de fakenews, o pânico moral de que as vidas LGBT contaminam a sociedade.

O que contamina a sociedade é o ódio pregado por igrejas que não entenderam que Jesus Cristo só falava de amor. O que mata a sociedade é roubar o Estado, porque sempre se rouba dos mais pobres. O que dilacera um país é agredir mulheres, crianças e idosos. O que nos desqualifica como nação é não enfrentar a desigualdade social que nos coloca sempre nos piores indicadores, porque tratamos pessoas como quaisquer coisas. O que nos faz pequenos, apesar de continentais, é sermos racistas, misóginos, lgbtfóbicos. Isso se enfrenta de duas formas: com vergonha na cara e com educação para a cidadania. Não se educa para a cidadania sem o ensino qualificado, entre outros temas, de gênero e sexualidade nas escolas.

É 28 de junho, temos uma bela oportunidade de começar a escrever uma história mais colorida. Uma história da qual todos nós sintamos orgulho. É preciso, neste tema, ter lado. No limite, estamos tratando de vida e morte. Escolho a vida de todas as LGBT. Escolha esse lado você também. Você, que não é LGBT, não perderá nada. Vem com a gente! Porque nós sobreviveremos!

(*) Guilherme R. Passamani é doutor em Ciências Sociais (Unicamp), antropólogo da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e coordenador do Núcleo de Estudos Néstor Perlongher – Cidade, Geração e Sexualidade.

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