ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, QUARTA  24    CAMPO GRANDE 24º

Beba das Crônicas

Cavalos correm pelos campos da colina chamuscada de chuva

André Alvez | 15/08/2020 10:41

Na sala do consultório, antes de ser chamado para a consulta com o oftalmologista, frases soltas percorrem o meu pensamento: os cavalos correm pelos campos da colina cor de cinza chamuscada de chuva.

À minha volta uma quantidade imensa de pessoas também aguarda a vez. Os olhos falham. Qual desespero maior do que a cegueira? Nem a certeza da morte é tão cruel. Eu escrevo, leio, vejo filmes. Se a luz dos meus olhos se forem, o som da boca irá junto, me calarei e mendigarei aos meus ouvidos para que não se fechem e ao menos eu possa ouvir o trotar dos cavalos correndo pelos campos da colina, guiado pelo tamborilar dos pingos da chuva, formando aos poucos chamuscos cinzas de quem apenas ouve e nada vê.

O frio de agosto me percorre enquanto a senhora de máscara cor de rosa ao meu lado pinga o colírio nos olhos sem pedir ajuda: ela mesma abre com as mãos as pálpebras e pinga uma gota em cada olho numa exatidão comovente. Depois sorri para mim, um riso convencido atrás da máscara.  Sinto por ela a mesma admiração que tenho pelos alpinistas, os paraquedistas e toda pessoa que desperdiça o domingo para lavar o carro ou ir à igreja.

O casal na outra ponta toma conta de uma única poltrona, vive num mundo apenas deles. Ela se deita no ombro do companheiro e parece que são uma só pessoa. Devem dormir de conchinha. Graziela cuida de mim, se encarregará de pingar o colírio. A moça se mexe no ombro do rapaz e ele alisa os seus cabelos. Cena linda que registro na mente, mesmo com os olhos um tanto embaçados. Qual deles está com problema nas vistas? E se um dos dois não enxergar mais? Os corpos se atrairão, certamente, e continuarão dormindo de conchinhas. Ouço ao longe o trotar dos cavalos. É nesse instante que consigo ouvir meu coração.

Peço socorro às imagens do passado, preciso fugir da realidade. Então se abre no meu pensamento a manhã de um domingo do passado, o mesmo sopro frio de agosto, vejo a minha mãe chegando da feira trazendo uma galinha embaixo do braço. Ouço nitidamente os cachorros latindo, “passa, passa” ela diz, tentando se desvencilhar, corro para ajuda-la e os olhos da galinha eram de fogo, sem piscar, o medo refletido, a percepção do fim. Meu padrasto surgiu de repente, um facão nas mãos, não disse nada, apanhou a galinha das mãos da minha mãe e lhe decepou a cabeça. Mesmo morto, o bicho pulou várias vezes, esparramando um filete de sangue pelo chão vermelho, imagem presa na minha mente para sempre, a criança de dez anos encarando os pequenos olhos da galinha morta, inerte, sem luz. Senti a crueldade humana e não conseguia olhar para minha mãe.

Durou até o almoço ficar pronto e a galinha era o prato principal:

- Eu quero a coxa! Disse e provavelmente os meus olhos brilharam, sem piscar.

A fome dói mais que a piedade.

Tempos depois, levei meus filhos pela primeira vez à uma churrascaria. O Bruno queria coração de frango e o garçom fez descer do espeto até o seu prato cinco ou seis pedaços de uma só vez. Ele comeu, adorou, pediu mais. Fiz um alerta:

- Coma tudo, não deixe nada, fique sabendo que cada coração desses era de um frango que morreu para você se alimentar. – Ele me olhou com olhos de surpresa e no instante seguinte seus olhos se transformaram numa cachoeira de lágrimas (nunca vi ninguém chorar tão bem quanto o meu filho Bruno) e soluçava, o rosto vermelho de tanto chorar, vez em quando lançava em minha direção um olhar de revolta misturado com piedade –.

- Você devia ter me falado antes, pai.

- Achei que você soubesse. De onde mais poderia sair o coração de frango se não do peito do bicho vivo? Achou que davam em árvores?

- Achei.

E não disse mais nada, comeu tudo e não falamos mais sobre o assunto.

A senhora do colírio me desperta, me traz de volta à realidade como num beliscão: retira a máscara cor de rosa do rosto por instantes, olha para mim como se me conhecesse há muito tempo, confidencia:

- Fico sufocada às vezes.

Eu sorrio de volta e meu gesto de mãos são palavras, tudo bem, acontece, mas seja rápida.

Ela tem a voz do passado, tal qual os pingos da chuva chamuscando os campos da colina até torna-la cinza.

Eu sempre parei para reparar as pessoas, as flores e as árvores. Deve ser esse o motivo de guardar tantas lembranças. E volto ao passado: nunca me fizeram um bolo de aniversário, jamais ouvi o cantar de parabéns em minha homenagem, mas a fumaça escapando no fio da vela do bolo tem o mesmo cheiro de velório. Fecho os olhos e sinto aquele cheiro. Coisa de aquariano.

Antes, quando diziam que a vida é passageira, eu ria, queria comer o bolo de aniversário dos outros, ver a vela se apagando até o cheiro da festa se confundir com o cheiro de velórios. Os bolos tinham gosto de manteiga e algumas bolinhas brilhosas de chumbo doíam os dentes, mas ninguém deixava restos no prato.

O casal enfim se mexe, ele atende o celular e aponta para a companheira o relógio na parede.

O carinho dá lugar à pressa.

As horas...Nunca acreditamos no relógio, mas os ponteiros andam, tic, tac, e os minutos se tornam horas, o dia é segunda, mas logo é domingo, a semana que vem é amanhã e já se passou tanto tempo desde aquela vez que vi minha mãe trazer a galinha embaixo dos braços, o corte na cabeça, o cheiro do assado, frio de agosto arrancando lágrimas de sopro de vento.

Coço os olhos ardentes, naquele tempo não precisava suspirar pelas luzes do dia, eu enxergava tudo, de perto e de longe.

A espera também me faz ouvir músicas na mente, vejo a batuta do maestro sem enxergar-lhe as mãos, a cortina ainda aberta, mas o pano já é opaco.

Enfim sou chamado, na frente do casal e da senhora da máscara rosa. Nunca saberei qual dos dois está com problemas na visão e a senhora da máscara rosa pode até ser um fantasma, porque de passagem, olhei para o casal  e vi uma vela de aniversário se apagando, mas quando olhei para a senhora da máscara cor de rosa, senti o cheiro de velório.

O médico me recebe num sorriso, já me conhece.

- Não é nada grave, não precisa fazer drama.

- Estava ardendo e tudo embaçado.

- Vou aumentar o grau.

- Mas você está dizendo que terei que usar colírio para o resto da vida.

- Sim, um simples colírio. Imagine a diferença para alguém que precisa implantar uma lente ou algo assim.

Sou descrente, mas nesses momentos, murmuro orações.

Ao sair, a senhora ainda aguarda a sua vez e me lança um sorriso atrás da máscara rosa.

Ela conhece o meu desespero, sabe que jamais conseguirei pingar sozinho o colírio nos olhos.

Será?

A vista anda fraca, mas o pensamento é feito a chama da vela do bolo de aniversário: tremula, mas ainda queima, segurando o sopro do tempo, tic, tac, tic, tac.

Tento, e consigo, uma gota certeira de colírio nos olhos bem abertos.

E então já posso ver os cavalos correndo pelos campos da colina, tudo verde, brilhante, sem nenhum tom de cinza.

Nos siga no Google Notícias