Conto 'Cabeça Molhada' retrata drama familiar
Esse meu conto ficou em terceiro lugar no concurso de Contos Ulysses Serra da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.
Cabeça molhada
A nossa relação vem do sangue escorrendo nas veias.
Há uma imagem dele em um retrato na cabeceira da minha cama, uma única foto, toda a dor de uma saudade.
Quando eu acordava, ele já tinha partido para trabalhar.
Empurrava pelas ruas da cidade um carrinho enorme de rodas que ele mesmo inventou.
Juntava latas, papelões, restos de comida e até animais mortos. Vendia tudo. Fazia isso de segunda a domingo. Quando retornava, já noitezinha, trazia a cabeça completamente tomada pelo suor. Logo, nas redondezas e até mesmo em casa, começou a ser chamado de Cabeça molhada. O suor era tanto, molhava a camisa por inteira. Trocávamos poucas palavras, ele se fazia feliz ao me ver, alisava meus cabelos lisos e negros e só não beijava meu rosto por puro respeito ou medo de ser rejeitado.
Ele não sabia o tanto que era importante para mim.
Logo depois de tomar banho, fumava um cigarro escondido e comia o que havia restado do almoço. Depois espichava o corpo no colchão estirado ao solo, dormia um sono ligeiro e pesado. Muitas vezes falava dormindo e eu ajuntava suas mãos às minhas, alisando os calos dos seus dedos até o sono acalmar.
Nossa mãe estava quase cega, de diabetes e de tanto apanhar do meu pai. Os gritos de dor e desespero da minha mãe ainda hoje navegam na minha mente.
Eu devia ter sete anos quando meu pai, completamente bêbado, deu uma surra na minha mãe, jogou meu irmão para fora de casa, se trancou comigo na casa e sem se incomodar com meus dedos trêmulos, retirou minha saia e depois a calcinha, me deixando inteiramente nua. Riu um riso de gosto de pinga e depois tentou me forçar a abrir as pernas. Desesperada, chamei meu irmão e ele, ainda um menino, tentou empurrar a porta de fora para dentro na intenção de me salvar. Não conseguiu, mas fez tanto barulho que os vizinhos se alertaram, foram em peso até a nossa casa. No ritmo dos meus gritos, empurraram a porta até que ela se quebrasse. A cena dentro da sala chocou a todos, meu pai, completamente nu, deitado sobre o meu corpo frágil e completamente entregue. Meu irmão voou para cima do meu pai, canivete em punho – a cabeça completamente molhada pela primeira vez – apontou o punhal bem onde a veia pulsava no pescoço, mas minha mãe o tomou pelas mãos num movimento ligeiro:
- Não faça isso, ele é o seu pai!
O vizinho mais antigo se meteu entre eles:
- Dona Jussara, o seu marido é um bêbado imprestável e estava tentando fazer sevícias com a filha. Deixa o seu menino arrebentar com ele ou senão eu mesmo vou fazer.
Minha mãe tinha um tique nervoso, balançava a cabeça ligeiramente de um lado para o outro e só por isso a resposta veio demorada:
- Ele é meu marido, sustenta a casa porque tem trabalho e não fosse o vício maldito na cachaça, jamais agrediria a filha.
Diante dos olhares espantados de todos, completou para mais nada dizer:
- Ruim com ele, pior sem ele.
Nada fizeram, foram todos embora levando o sentimento de revolta, enquanto meu pai seguiu pelo lado oposto da estrada, só retornando no dia seguinte, pedindo perdão.
Meu irmão passou perto da minha mãe e fez questão de lhe mostrar a cabeça completamente molhada:
- A senhora nunca mais se preocupe com a comida que nosso pai traz para casa. Amanhã mesmo vou começar a trabalhar recolhendo lixo. Não vai faltar nada aqui dentro. Pode mandar ele embora, senão eu vou matá-lo.
- Você é um menino frágil, não entende, seu pai é muito mais forte que você e quando tiver curado a cachaça vai te bater como sempre fez?
- Pode ser mais forte, mas uma hora ele vai dormir...E nessa hora os fracos matam os mais fortes.
No dia seguinte, mesmo com braços e pernas frágeis de menino, meu irmão passou a trabalhar nas ruas da cidade, sem se importar com o intenso suor que lhe tomava o corpo por inteiro.
Desde então, era sempre saudado pelo povo:
- Lá vem o cabeça molhada!
- Aqui cabeça molhada, tem umas latas para você.
Meu pai sentiu medo assim que ele completou doze anos e a lida com o trabalho encheu seus braços de músculos. Uma noite, saiu pela janela e se perdeu na madrugada, deixando no ar um rastro de cheiro de cachaça. Não era mais o chefe da família.
Ninguém reclamou sua ausência, meu irmão era a nossa fortaleza e ele trabalhava contente, sem parar. Nada faltava para as mulheres da casa, comida, calçados, roupas e até perfumes. Seus olhos úmidos me faziam uma única exigência: a lida dos estudos, cobrava cadernos limpos e tarefas respondidas, além de notas boas na escola.
Os olhos do meu irmão brilhavam de felicidade quando chegava em casa. Foram quatro ou cinco anos assim, até o dia miserável que ele não voltou para casa.
Soubemos do acidente no dia seguinte pela manhã.
Algum maldito invejoso empurrou o carrinho na ribanceira e no desespero de salvá-lo, meu irmão caiu junto no precipício. Fomos ver a retirada do corpo. Estava tão machucado que não o reconhecemos. Alguém trouxe um lençol branco e colocaram o corpo estraçalhado por cima. Minha mãe balançava a cabeça sem conseguir dizer palavras. Após a tremedeira cessar, me aproximei do corpo, arregalei os olhos e retirei a poeira que cobria o seu rosto... Não era ele, não podia ser.
- Não tem sorriso – exclamei, quase sem sentir.
- Não existe sorriso em defunto. – Disse um senhor do olhar de penumbra, postado ao meu lado.
Agachei mais perto e alisei seus cabelos. No toque dos meus dedos, sua cabeça começou a molhar e exalar o mesmo cheiro de suor de antes.
Ainda não queria acreditar. Num último resto de coragem, abri os seus olhos e uma enxurrada de lágrimas desabou corpo abaixo, indo molhar a camisa rasgada.
Era sim o meu irmão.
Voltamos para casa, minha mãe e eu, empurrando os restos do carrinho, o mesmo carrinho que na manhã seguinte conseguimos consertar.
Assim que soube, meu pai tentou retornar a ser o chefe da família. Pela primeira vez vi as raízes dos cabelos da minha mãe minando água. Ele ainda fedia cachaça, sequer tentou se impor, desistiu diante do brilho de faca nas mãos da minha mãe.
Sumiu de nossas vidas para sempre.
Hoje, nas ruas da cidade, não existe mais um menino forte da cabeça molhada empurrando um carrinho de recolher lixos. A figura agora é a de duas mulheres fazendo o mesmo serviço, cada uma empurrando um lado do carrinho, apanhando todo o lixo encontrado pelo caminho, os cabelos, pretos e brilhosos, aos poucos se encharcando de suor.
André Alvez
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