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Comportamento

A dor de perder um irmão: pela viagem que não fizemos juntos

Andrea Brunetto | 20/07/2014 08:39
A dor de perder um irmão: pela viagem que não fizemos juntos

Ele era um ser humano especial desde pequeno, e foi uma criança linda, nasceu loirinho, com o cabelo encaracolado; tão branco que teve o apelido de alemão. E foi uma criança calma e com esse dom precioso que é o senso de humor. Era o caçula de quatro irmãos.

Não gostava muito de estudar, era sempre difícil mantê-lo na escola, sobretudo nas manhãs em que já havia decidido não ir. A irmã mais velha o arrumava e deixava na porta da escola, ele saia pelo portão dos fundos e voltava para casa, entrava sorrateiramente e voltava a dormir, ou a brincar.

Gostava de imitar o Pato Donald e construir pequenas engenhocas eletrônicas; desmanchava um despertador e transformava um carrinho comum em um carrinho eletrônico. Era muito engenhoso e criativo, mas a escola lhe parecia uma prisão, não conseguia desenvolver nela sua criatividade.
E sempre criava mundos diferentes para si. Uma época sua paixão era acampar, comprava todos os apetrechos necessários, só queria saber disso. E depois se cansava um pouco e ia em busca de outro entusiasmo. Enquanto tinha um projeto se doava para ele totalmente.

A coisa mais importante e duradoura de sua vida foi a paternidade. Tornou-se pai aos dezoito anos. E à despeito de ser um pouco “um menino grande”, foi um pai amoroso, atencioso e responsável. E tinha com seu filho um bom humor redobrado. Conversava com o bebê imitando a voz do Pato Donald, a criança ria. A criança, seu filho, estava sempre rindo do pai e com o pai.

Quando aos vinte e nove anos morreu em um acidente na rodovia, cujas responsabilidades nunca ficaram provadas, um futuro inteiro de possibilidades para uma vida se apagou. Todos que perderam um ente querido num acidente de trânsito ou em outra forma inesperada, rápida, violenta, sabem disso: quantas coisas você não vai poder viver mais com aquela pessoa.

Ele não fará mais a viagem de motocicleta pela América do Sul que a irmã descobre no computador dele que planejara fazer. Ele se foi e tantas coisas que você não teve tempo de dizer ou fazer. Perder alguém é se deparar com um vazio, que você imaginava existir, pois sabe das fatalidades e riscos da vida, mas sabê-los é diferente da concretização. E o vazio fica aí, junto com essa ausência de projeção para o futuro, sem nada. Vivemos de lembranças, de muitas, grandes cenas, pequenas cenas, um gesto, um sorriso, um dia uma conversa no domingo à tarde: mas por que será que ele me fez aquela pergunta mesmo? É como um quebra-cabeça que a cada vez distribuímos as peças de forma diferente. Um mosaico de lembranças a ser eternamente construído. É o que temos.

Uma mãe que perde um filho é uma dor sem nome; um filho que perde um pai é uma dor sem nome. Uma irmã começa uma viagem de férias, irá conhecer um novo lugar, e no primeiro aeroporto, entre os tantos que passará, lembra do irmão, de todas as viagens que não fará com ele. Porém, só em parte

*Andrea Brunetto é psicanalista, escritora e colaboradora querida do Lado B

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