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Comportamento

A galera bebe cerveja com Sadan, sem imaginar a real história do Hassan

Guerra e saudade de casa marcam a vida do homem que leva fama de “grosso” em conveniência da Avenida Três Barras

Thailla Torres | 02/04/2019 07:25
Com o uniforme militar em mãos, o empresário conta como chegou em Campo Grande e sua relação com a guerra do Oriente Médio. (Foto: Marina Pacheco)
Com o uniforme militar em mãos, o empresário conta como chegou em Campo Grande e sua relação com a guerra do Oriente Médio. (Foto: Marina Pacheco)

Há anos, o buchicho entre os clientes de uma das conveniências mais conhecidas da cidade, o principal assunto é o dono. Uma pessoa que, de poucos sorrisos, leva a fama de grosseiro em turmas que passam no lugar para comprar aquela bebida ou carvão para o churrasco.

O empresário Hassan Afif Hamieh é sempre muito sério. Sentado no caixa passa o valor, pega o dinheiro e devolve o troco sem muita conversa. Conveniência cheia de gente bebendo, ao contrário do que busca outros estabelecimentos, para ele é um tormento. “Não gosto de bagunça na minha porta, prefiro manter a ordem e apenas vender”, justifica.

Mas ao conversar com o empresário, a impressão é de que as aparências enganam. Hassan fala baixo, parece calmo, pelo menos em entrevista, e ainda com sotaque árabe carregado. Mas se o estresse bate à porta, ele admite. “Quando me deixam nervoso o árabe aparece com força, mal dá para entender direito meu português”, ri.

Hassan na frente de um tanque. (Foto: Arquivo Pessoal).
Hassan na frente de um tanque. (Foto: Arquivo Pessoal).

O sorriso de poucos segundos surpreende. Hassan não parece tão rude quanto pintam por aí ou quando se tem a experiência rápida de comprar na conveniência. Sua “fama” ele já conhece de longe e ainda faz gesto com a cabeça de que não se importa. “Acham que eu sou bravo, né? Mas é que todo mundo entra aqui e não conversa comigo. Talvez eu também não dou muita conversa, mas como eu disse, não gosto de aglomeração aqui na porta”.

Nascido no Líbano, Hassan tem 53 anos e diz que fundou a Sadan Festas em 1990. Diferente de muitos libaneses, ele não chegou aqui para tentar uma nova vida. Carregava nas costas, segundo ele, o título de “traidor” por um dia ter se oposto a matar, em guerra, pessoas do mesmo grupo, que também eram xiitas. “Eu era de um partido, o Aman, que naquele tempo lutava na guerra. Quando o governo da Síria invadiu o Líbano, por volta de 1982, eles queriam ver xiita matando xiita, porque surgiu um novo partido, o Hezbollah”, explica Hassan, referindo-se ao grupo que fez os xiitaas ganharem força durante a guerra civil no Líbano e mudou o mapa político da região.

Hassan então saiu do Líbano, viajou até a França e depois desembarcou no Paraguai. “Foi quando eu conheci Campo Grande”, explica. Aqui, conheceu um amor e passou a viver do comércio, deixando para trás a guerra e a família.

Mas sua relação com os conflitos não parou por aí. Hassan nunca esqueceu a guerra que viveu e, anos depois, voltou ao Líbano, onde visitou xiitas, o partido e teve contato armamentos pesados que resultaram em fotografias que ele não esconde caso alguém pergunte. “Pouca gente sabe da minha história, mas eu não tenho vergonha de falar, é o passado da minha vida. Vai mudar se eu esconder? Não vai. Então eu falo com tranquilidade”.

Uma das fotos feitas em 2018, quando visitou seu partido no Líbano. (Foto: Arquivo Pessoal)
Uma das fotos feitas em 2018, quando visitou seu partido no Líbano. (Foto: Arquivo Pessoal)

Hassan foi um atirador de elite no Líbano, durante o período de guerra. Embora tivesse armado e de farda, ele diz que não matava civis e nem crianças. “Atirava em todo mundo que estava armado. Mas nunca civis desarmados e muito menos em crianças. Essas pessoas não tinham nada a ver com isso. Mas era o cenário de guerra”.

Nem todo mundo gosta de ouvir essa história, diz Hassan. Por isso, fala pouco do assunto, mas não se arrepende do passado que, como toda guerra, envolve mortes. “Já me perguntaram isso, mas não me arrependo de nada. Era a guerra e eu estava numa missão”.

Questionado sobre o que levou, ainda adolescente, a entrar para este cenário, o empresário lista os motivos. “Lá a gente não tem outra saída, muitas vezes, porque saiu cedo de casa e não tem onde trabalhar. Em outros momentos, pessoas querem entrar porque um puxa o outro. Eu gostava muito”.

Pelo celular ele mostra uma de suas últimas visitas. O contato com armamentos pesados, com forças para derrubar helicópteros e destruir tanques, são visíveis pela tela do aparelho. Hassan assume o gosto pelos objetos, mas, paradoxo a isso, ele fala sobre a defesa do armamento no Brasil. “Brasileiro não tem maturidade para usar arma e nem para liberação. Aqui as pessoas gostam de mostrar arma na rua, nem policial deveria fazer isso. Arma é pra ficar guardada, escondida e não para uma pessoa se aparecer”, comenta.

Em seguida lembra da guerra, da qual ele ainda não consegue ver um fim no horizonte, e traz lembranças dolorosas a família. “Perdi dois irmãos na guerra. Nessa foto, em que apareço no tanque, fiz uma homenagem a ele”, diz mostrando o celular.

Apesar de mais de 30 anos vivendo no Brasil, ele não nega a saudade de casa. “O principal na minha vida ficou lá, é a minha família. Se hoje você me perguntar se eu sou completamente feliz aqui eu digo que não sou, sinto muita falta deles”.

O sorriso aparece novamente ao mostrar uma foto da mãe, que depois de anos distante conseguiu visitar Hassan no Brasil. “Foi um momento muito importante pra gente”.

Após algum tempo de conversa com o Lado B, ali mesmo, no balcão da conveniência, Hassan parece um homem simpático e, gentilmente, vai até aos fundos da conveniência buscar a farda que trouxe do Líbano. “Essa é a que eu guardo com carinho. Aqui está o símbolo do partido, ó”, aponta para a escrita amarela do lado direito da farda.

Sadan em selfie com armas, também durante visita no Líbano em 2018.
Sadan em selfie com armas, também durante visita no Líbano em 2018.
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