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Comportamento

Antes de atacar ou defender a Polícia no Shopping, é bom saber o que está errado

Ângela Kempfer | 16/12/2015 11:18
Antes de atacar ou defender a Polícia no Shopping, é bom saber o que está errado

Compreender o que ocorreu no último domingo nesta cidade não é tarefa fácil. Sem paixões ou ideologias, fica bem mais complicado chegar ao veredicto do certo ou errado diante da surpresa de uma operação policial, com quase todas as delegacias especializadas no Shopping Campo Grande, centenas de garotos e garotas contra a parede e milhares de comentários nas redes sociais. Por isso, talvez sirva como "canja de galinha" (que mal não faz) a conversa que segue, com o juiz Roberto Ferreira Filho.

Depois de anos de experiência na Vara de Infância e Juventude, ele assumiu a 1ª Vara Criminal de Campo Grande. Por isso, conhece bem os mocinhos e os bandidos. Mas ele continua interessado nas questões da adolescência, como presidente do Fórum Nacional dos Juízes de Justiça Juvenil, que cuida dos temas ligados aos atos infracionais e medidas socioeducativas. Também foi convidado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, para levar o projeto de justiça restaurativa de Mato Grosso do Sul para o Brasil.

Roberto Ferreira avisa que não vai considerar especificamente os méritos dos fatos do dia 13 de dezembro, mas dar respostas que podem ajudar na compreensão. E, se para bom entendedor, meia palavra basta...a avaliação depois da conversa é de que tudo está errado e mais, a ação que tantos elogiam pode ser um tiro no pé do campo-grandense.

Como hoje no Brasil a regra é falar de moralidade, vale a reflexão sobre até que ponto estamos dispostos a respeitar a Constituição ou apoiar o vale tudo. Nesse caminho, Roberto Ferreira Filho ajuda, dando uma aula sobre qual o sentido da lei.

Entre muitos pontos esclarecidos, alguns destacados pelo próprio juiz mostram o quanto é arriscado viver na base de dois pesos e duas medidas, do prende primeiro e investiga depois, muitas vezes cobrado pela opinião pública. “Não é o apoio popular, por mais relevante que ele seja, que deve dizer e estabelecer os limites da ação de cada um. As maiorias de ocasião nem sempre são os melhores conselheiros e a história está repleta de exemplos. E é essa clareza de pensamento que garante que qualquer um de nós, sem exceção, possa ser protegido de eventuais injustiças. Hoje posso estar ao lado da maioria, muitas vezes imediatistas e que se apegam mais ao emocional que ao racional, mas amanhã pode ser um de nós ou dos nossos que precisará ver um direito fundamental sendo respeitado e justamente contra a opinião da dita maioria”.

Entendido isso, ou seja, que se o poder público não dá exemplo vai ficar cada vez mais complicado cobrar respeito de alguém, partimos para o limite entre segurança e totalitarismo (quando o estado manda e o sujeito tem de obedecer na marra).

Mesmo com a abordagem genérica, é possível aplicar muito do que o juiz explica aos fatos de domingo, fazer lembrar que a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XV, assegura o direito de ir e vir, sem restrições e independente de idade, para quem anda de ônibus ou de carrão. Por isso, obstar este direito sem fundamentada razão é ilegal. Partindo dessa máxima da Constituição (não sou eu quem esta falando), a operação no atacado, que envolveu cerca de 2 mil adolescentes, já começou errada. E os equívocos em uma ação desse tipo não param por aí, ensina Roberto Ferreira Filho. 

Lado B - Um adolescente poderia ser punido por não portar documentos?

Juiz - O livre circular das pessoas, adolescentes, inclusive, pode se dar sem uso de documentos. Portar documento não é obrigatório para que a pessoa possa circular. Não ter documento (exceto em lugares determinados: acesso para embarques, para locais específicos) não é impeditivo do direito de ir e vir. O artigo 68 da LCP (Lei de Contravenções Penais) diz que a pessoa deve, quando abordada, se identificar, possibilitar sua identificação, não se recusar a fazê-lo, mas não exige que ela esteja com documento. Alias, por mais absurdo que seja, ainda há brasileiros que não possuem documentos. Eles seriam criminalizados por isso?

Lado B - A Polícia tem direito a revistar pessoas indiscriminadamente?

Juiz - Revista pessoal é possível? Sim. E mesmo com adolescentes? Sim. Desde que, e isto o Código de Processo Penal é explicito (artigo 244 do CPP), haja fundada suspeita (a expressão é da lei) de que a pessoa esteja com arma ou, em geral, com algum objeto de crime, ou seja, presa em flagrante. Fora disso, mesmo a abordagem seguida de revista não é legitima. Não se pode abordar indistintamente. Só em casos, como diz a lei, como listei acima.

Lado B - Qual a diferença em relação ao que ocorre em shows, ou estádios de futebol, por exemplo?

Juiz - Tudo também se baseia na razoabilidade. Quando você faz revista "não vexatória", na entrada destes eventos, você não escolhe um "determinado grupo", você não parte de uma "visão seletiva", você revista indistintamente a todos e aí sim, até pelo chamado "princípio da adequação social", é atitude tolerada porque não fere, concretamente, o direito de uns em detrimento de outros. E o tipo de revista é diferente, é eminentemente preventiva, porque tradicionalmente são locais, pela aglomeração (milhares de pessoas em recinto fechado ou de espaço delimitado), em que confusões são possíveis. É bem diferente de parar transeuntes no meio da rua, só pelo fato e tão só pelo fato de serem determinado segmento social, e começarem a revistá-los. Para ser mais claro: imagine você, jornalista, andando pela Afonso Pena e vendo um grupo de rapazes encostados no muro, de pernas abertas, revistados por policiais armados. Agora imagine você, numa fila de entrada para um show, com policiais revistando a todos, normalmente, de maneira idêntica, geralmente sem "apontar arma para ninguém". Conseguiria distinguir o impacto entre as cenas? E mais, no show você voluntariamente adere às regras, desde que não abusivas, para participar daquele evento. Consente com normas de segurança adotadas para o local, desde que não discriminatórias.

Lado B – Especificamente no caso da ação no Shopping Campo Grande, é legítimo o uso de tamanha força policial em benefício apenas do conforto de clientes de um centro comercial?

Juiz - Prefiro me abster

Lado B - Quem defende o braço forte do Estado usa sempre o argumento do “adolescente pode tudo no Brasil”. O senhor concorda?

Juiz - O adolescente não tem menos direitos que os adultos nestes assuntos, muito pelo contrário. O que não pode ser feito com o adulto (abordagens injustificadas, cerceamento injustificado ao direito de ir e vir) também não cabe no caso do adolescente. O que não significa impunidade e nem muito menos, que o adolescente pode tudo. Não pode. Se cometer ilícito pode, desde os 12 anos (e o Brasil é um dos países que mais precocemente pune alguém), cumprir punição, inclusive perdendo a liberdade com a medida de internação. Ele, adolescente, não pode tudo, mas é cidadão, é sujeito de direitos, e, como tal, deve ser respeitado...Se o adolescente está em situação de risco (e ir à praia, ao parque, ao shopping, a rigor não gera risco nenhum), cabe aos órgãos de proteção (Conselho Tutelar, sobretudo), atendê-lo, não puni-lo ou expô-lo a constrangimentos, como revistas públicas, com mãos contra a parede, com armas apontadas em sua direção, por exemplo. Agora, se o adolescente está cometendo ato infracional, todas estas providencias são legitimas, legais, autorizadas.

Lado B - Quais os efeitos de uma ação truculenta e abusiva na sociedade?

Juiz - Ações de repressão devem ser utilizadas só quando necessárias. Quando não o forem, podem gerar sentimento de arbitrariedade, de desconfiança em relação ao estado e isso é prejudicial. Primeiro que não resolvem a questão da insegurança, criam sensação de descrédito das próprias instituições, e legitimam abusos, até desestimulando a grande maioria dos policiais cumpridores de seu mister. Em um primeiro momento, passa sensação de alivio, pois somos imediatistas. Mas servem para estigmatizar, mais ainda, uma parcela da sociedade que é muito mais vitima que vilão da violência (morrem mais, sofrem mais abusos sexuais e mais maus tratos do que provocam). É engano acreditar que a única alternativa para termos "paz" é aplaudirmos o arbítrio e o abuso de poder, muito pelo contrário. Não só eles servem como instrumento de abuso de poder, como violação de direitos, como desaguam para perseguições, preconceitos e proteções indevidas, inclusive gerando impunidade e ferindo o princípio da impessoalidade. O poder descontrolado persegue os indesejáveis, e com base em critérios absolutamente subjetivos, e trata de modo privilegiado os que a ele são simpáticos.

Lado B - A cidade tem políticas públicas que colaborem com a diminuição da criminalidade?

Juiz - Esse é o ponto mais importante. É a prevenção é o instrumento mais valioso de combate à criminalidade, sem prejuízo das demais políticas, mesmo as de repressão, nos limites legais. Projetos sociais de inserção social, de profissionalização, de cultura, esporte, lazer, que incentivem a elaboração de projeto de vida, de aprendizado de relacionamento social e comunitário, de respeito à tolerância e à diferença, de noções de cidadania, constroem a mudança de valores, de paradigmas, permitem a busca de alternativas saudáveis para a solução de conflitos, por exemplo. Há bons projetos por aqui, sem dúvida, mas há carências sérias também. Cito uma, para exemplificar. Até hoje, a despeito do ECA trazer isto desde 1990, não há nenhum projeto, nenhum que cuide do adolescente egresso do sistema socioeducativo. Ou seja, aquele que já cumpriu medida socioeducativa, por exemplo, de internação, já sofrerá com a estigmatização, com a rotulação social, ficará "marcado", e necessita de olhar diferenciado e de oportunidades efetivas para ser inserido socialmente. Onde programas assim existem, cito Porto Alegre, por exemplo, onde a redução da criminalidade nesta faixa etária foi notável, foi exemplar, muito mais eficiente que qualquer política que priorize a repressão.

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