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Comportamento

Curiosidade de vizinho mostra que a vida alheia se parece com a nossa

Elverson Cardozo | 07/01/2014 06:35
Curiosidade de vizinho mostra que a vida alheia se parece com a nossa

Em uma de suas crônicas mais conhecidas, o escritor brasileiro Luiz Fernando Veríssimo questionou:

- (...) O lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social.

O diálogo acontece entre dois moradores, a senhora do 601 e o senhor do 612, que se encontram, cada um com seu pacote, na área de serviço. Eles não se conhecem. É a primeira vez que se falam, mas um sabe da vida do outro.

É preciso admitir: O descarte na lixeira, se bem observado, por quem tem interesse, lógico, é mesmo um bom denunciante da vida alheia, mas a rotina, por si só, é capaz de revelar o tipo que habita o outro lado do muro.

Pode ser a dona de casa, o estudante, o adolescente baladeiro, a senhora aposentada, um famoso nas redes sociais ou na mídia, e até um criminoso que se esconde atrás da máscara de brasileiro trabalhador.

No mês passado, a notícia de um cárcere privado chocou Campo Grande. Os vizinhos das vítimas, moradores do bairro Aero Rancho, sabiam que havia alguma coisa errada na casa de Ângelo da Guarda Borges, de 58 anos. Desconfiança foi o que não faltou.

Porque alguém, sem “culpa no cartório”, proibiria a agente de saúde de fazer uma visita regular? E porque colocaria espelho no portão? A polícia investigou e a verdade veio à tona: O servente de pedreiro mantinha a esposa e os quatro filhos trancados, dentro da própria casa, há 22 anos. Eles viviam em condições subumanas. O mesmo servente já havia mantido, por 11 anos, outras duas famílias em cárcere privado.

O exemplo, neste caso, é trágico, assustador, mas a curiosidade pode gerar descobertas positivas, acabar em amizade ou render, às vezes, uma bela história de amor. O que parece improvável acontece.

A gente nunca sabe quem habita a casa ao lado. (Foto: Cleber Gellio)
A gente nunca sabe quem habita a casa ao lado. (Foto: Cleber Gellio)

Por dentro da vida alheia - A estudante Amanda Gomes não conversa com os moradores do terreno ao lado da casa dela. A relação resume-se ao “Bom Dia, Boa Tarde e Boa Noite”, mas ela sabe que a residência é de um policial “porque ele usa farda”.

O militar, segundo a jovem, é casado e tem uma filha pequena, de 6 anos, no máximo, que grita à beça e gosta de se divertir na piscina de plástico (ela nunca viu ninguém chegando com uma de fibra para instalar). O barulho de água, no fundo do quintal, foi o indicativo do brinquedo refrescante.

O muro alto e a falta de contato dificultam o acesso às outras informações, digamos, privilegiadas, mas os vizinhos são, nas palavras dela, educados e respeitadores. “Não fazem barulho com som alto, essas coisas...”, mas gostam de músicas “antigonas, dos anos 80, por aí”. “A casa é grudada com a nossa. Dá para saber bastante coisa”.

Da vizinha do fundo, Amanda sabe pouco, bem pouco, por isso, resume: “É uma velha chata que tem um cigarro podre”. Os filhos, contou, são “barraqueiros” e a preferência musical, para ela, é um tormento. “Sempre coloca músicas irritantes de sexta até domingo, aqueles sertanejos do tempo do êpa. E ela canta com voz de taquara rachada”.

Dossiê do vizinho - Não que bisbilhotar a vida alheia seja do seu feitio, mas o professor de capoeira Silvio Borges da Silva, de 37 anos, é outro que tem um “dossiê” dos vizinhos.

Na verdade, ele só montou o “quebra-cabeça”. As peças, soltas, foram deixadas por eles mesmos. O rapaz da casa ao lado é caminhoneiro. “A carreta fica estacionada na rua”, disse. É casado e tem uma filha de 6 anos. Descobrir isso foi fácil. A menina é aluna dele.

O outro morador é “viajado”. Dia desses estava nos Estados Unidos. Quem revelou o destino foi o próprio pai do rapaz, que aluga a casa onde Silvio mora. Da residência, sem sair para rua ou sondar pelo buraco do muro, o professor conseguiu descobrir outra coisa: o viajante misterioso gosta de rock. “Vai gente lá e ele coloca essas músicas. Vira e mexe também canta sozinho”, explicou.

Mesmo “modus operandi” - Morador do lajeado, Valter Pereira da Silva, 35 anos, avisa, logo de cara, que não é adepto da “abelhudice”, mas, pela convivência e pelos “rastros” deixados por seus “companheiros de rua”, o faqueiro consegue chegar a algumas conclusões, apressadas, é claro.

Ele tem certeza, por exemplo, que os vizinhos da direita são católicos. “Não vejo ninguém indo para a igreja, não tem culto lá e nem ouço orações”, justifica. Apesar disso, ele nunca viu nada, no local, que remetesse à religião. É “achismo”.

Valter Pereira não costuma cuidar da vida alheia, mas já chegou a várias conclusões. (Foto: Elverson Cardozo)
Valter Pereira não costuma cuidar da vida alheia, mas já chegou a várias conclusões. (Foto: Elverson Cardozo)

Do estilo musical, pelo menos, Valter tem uma opinião mais embasada. Sabe que os moradores gostam de sertanejo porque já ouviu um som de viola no ar. Da vida amorosa – alheia, é claro -, o faqueiro arrisca o seguinte: “Ele é casado com uma senhorinha”. Da profissional, tem poucas informações. “O homem trabalha, mas não sei com o que. Sai cedo e só chega à noite”.

O terreno à esquerda, prosseguiu, pertence, provavelmente, a uma diarista de aproximadamente 36 anos. “Ela sai cedo e volta à tarde”, comentou. As evidências, para ele, não deixam dúvidas da profissão.

O mesmo “modus operandi” reforça a “tese”. A mulher sai de casa às 6h30 e só retorna às 19h. Isso acontece às segundas, quartas e sextas-feiras. Com uma rotina assim, pensou, a vizinha só pode ser diarista. Talvez seja, mas a certeza, neste caso, é só uma suposição. Apenas.

Citando Luiz Fernando Veríssimo, fica a pergunta: Só o lixo é domínio público?

"O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social (Luiz Fernando Veríssimo). (Foto: Cleber Gellio)
"O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social (Luiz Fernando Veríssimo). (Foto: Cleber Gellio)
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