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Comportamento

Educada para ser homem,ela se reconstruiu por cirurgia e virou alvo na UFMS

Paula Maciulevicius | 30/10/2014 06:24

Educada sem trégua para ser homem, afinal, nasceu assim, ela agora é mulher. Nascida em casa, de parteira, numa cidade pequena, da região Norte do País, ela teve, apesar de não completamente desenvolvido, o pênis como determinante. Era menino, sem querer ser. 

"Minha infância foi marcada assim por violência incitada pela minha androgenia e meu comportamento feminino. Isto porque nasci levemente acometida por uma condição conhecida como ambiguidade genital. Este pequeno distúrbio hormonal, na fase feto, que apesar de ter impedido minha genitália de se formar plenamente, permitiu que ela se desenvolvesse suficientemente para que o meu sexo fosse determinado como masculino, de acordo meu meus cromossomos XY".

Este é o resumo do nascimento da mulher, hoje, com 48 anos. Ela protagonizou, sem ao menos querer, a polêmica instalada na UFMS que culminou no incêndio da sala anexa ao DCE (Diretório Central Estudantil), queimando 200 livros. Tudo enraizado no preconceito.

Os episódios de violência gratuita começaram na sala de aula. Acadêmica de Letras, ela já é formada no mesmo curso, mas buscava habilitação também em espanhol. Ao ser agredida verbalmente e depois ameaçada fisicamente, ela fotografou os agressores para que pudesse identificá-los. A tentativa de se defender sem retribuir a violência terminou em hostilização a ponto de ela ter de sair do Restaurante Universitário escoltada por seguranças da Universidade. 

Esta foi apenas uma das recorrentes situações de preconceito já vividas. "São traumatizantes, recordo da violência que sofri", diz.

A vida dela foi entre o Norte, Mato Grosso doo Sul, São Paulo e Inglaterra. No início dos anos 2000, quando relata ter estado num quadro de depressão severo, começou a se tratar com psiquiatra. "Eu estava muito magra, a comida não tinha sabor. Meu corpo decidiu morrer, apesar de que eu nunca ter essa coragem", conta.

Dos anos de terapia e medicamentos, saiu fortalecida e como ela mesma diz: "comecei a desafiar o mundo". Até então ela só se vestia como mulher à noite, quando os olhares eram em menor proporção. As roupas até então foram sempre unissex, que não revelavam quem de fato ela era. "As pessoas zombavam de mim, da minha aparência andrógina", lembra.

Encaminhada ao Hospital das Clínicas em São Paulo para fazer a reconstrução genital, teve medo devido à alta taxa de óbito pesquisada. Há dois anos, ela conta que vendeu o que tinha para fazer a cirurgia na Inglaterra. "Quando me olhei no espelho, foi uma sensação maravilhosa, parece que eu já era assim".

Da Inglaterra, ela conta ter feito mais que a cirurgia. Encontrou um grande amor. O relacionamento começou em 2007, através de um site. Para ele, ela se abriu e explicou a condição. "Ele nunca tinha conhecido alguém assim antes, pediu tempo para pensar e depois de um mês voltou", lembra. Já se passaram 7 anos da história, inclusive o período da cirurgia.

O que a trouxe aqui, novamente, foi a alteração nos documentos. Exatamente há 1 ano ela espera por decisão da Justiça para retificar a certidão de nascimento. "Para eu poder me casar", completa. O nome antigo, que ela prefere não falar, termina com a letra "e" e na época do nascimento, servia para os dois sexos.

O menino foi dado por uma freira católica num instituto de caridade em São Paulo no qual ela participava de ações solidárias. "No convento, não sabiam de nada, ela era uma senhora de idade. Quando perguntou meu nome e eu falei, ela entendeu. Eu não quis corrigir e deixei e ela passou a me apresentar com mulher", explica.

A mudança de nome é uma medida cautelosa e como o tempo seria o seu maior contraponto de angústia, ela escolheu voltar para a universidade. "Foi para não enlouquecer. Mas eu sabia de tudo o que ia sofrer", pontua.

Segundo ela, alguns dos professores eram os mesmos da época em que cursou Letras pela primeira vez. Na secretaria acadêmica, ela sustenta ter levado o requerimento para ser chamada por ela e ainda pediu sigilo. "E não foi nada disso que aconteceu", argumenta.

"Eles começaram a me olhar, talvez me vissem como travesti e este episódio, eu quero entrar contra. Eles já estão identificados", comenta.

No tempo em que aguarda a documentação sair, ela não conseguiu emprego mesmo tendo um currículo com fluência no inglês. Agora ela diz seguir a vida da melhor forma possível. "Mas a vida foi muito injusta comigo. Todo mundo nasce completo, por que eu nasci pela metade? Por que eu era diferente? Por que me rejeitaram e me agrediram tanto?" se pergunta.

Depois do episódio da UFMS, diz que apesar da acolhida do DCE e do grupo LGBT, não se sente parte do que a sigla representa. "O que eu quero ser é embaixadora. Promover o diálogo entre esses dois mundos: a sociedade e os LGBT".

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