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Comportamento

Fogo levou memória e “xiru” de 500 anos, que abençoava casa de reza

Em Dourados, incêndio acabou com templo que era símbolo da resistência cultural na aldeia, o último de MS

Thailla Torres | 09/07/2019 08:06
Casa de reza antes do incêndio, coberta por capim sapé.
Casa de reza antes do incêndio, coberta por capim sapé.

Ao redor da fumaça, índios guarani-kaiowá batiam levemente os pés no chão, balançando o corpo com os maracás, enquanto entoavam uma reza lamuriosa. A cena ocorreu horas depois de a última casa de reza da reserva indígena de Dourados, a 233 km de Campo Grande, ser totalmente destruída. É o fim do templo que representava a cultura indígena e abrigava 500 anos de história, segundo diz a comunidade, o último originalmente feito pelos guarani, ainda em pé em Mato Grosso do Sul.

No lugar, uma das perdas irreparáveis é de um xiru, estrutura feita com varas em formato de cruz, passada por gerações entre as famílias. É um objeto considerado sagrado, que traz presentes divinos ou, se descuidado, provoca pragas e doenças. Como as casas de reza, são o pouco das tradições originais que ainda resistiam na reserva hoje dominada pelas igrejas evangélicas.

O incêndio aconteceu na aldeia Jaguapiru, que fica a seis quilômetros do município, depois de uma noite bastante fria. O fogo que surgiu pela manhã ensolarada queimou totalmente a estrutura de madeira coberta por capim sapé. Do espaço sagrado ficaram apenas restos de madeira, totalmente queimados. Entre os elementos ritualísticos e objetos sagrados, um xiru centenário. “Nós sentimos muito por causa desse xiru, nativo dos nossos avós, bisavós, feitos pelos antigos, todo de madeira. Foi a maior perda além da nossa casa”, descreveu Arlindo Agenor da Silva, de 51 anos, nascido e criado na aldeia, e cunhado do cacique Getúlio Juca.

Casa de reza em construção na aldeia, em 1949. (Foto: Arquivo Cimi - Conselho Indigenista Missionário)
Casa de reza em construção na aldeia, em 1949. (Foto: Arquivo Cimi - Conselho Indigenista Missionário)

Segundo os indígenas, o fogo se espalhou após um homem, não identificado, provocar o incêndio. “Meu marido viu quando um homem colocou fogo, mas correu para o milharal. Na hora ele pensou nas crianças que estavam dentro da casa de reza”, conta a guarani-kaiowá Alda Silva, de 73 anos, esposa do cacique.

Nesta segunda-feira (8) foi difícil conversar com seu Getúlio, o cacique, por telefone. Bastante entristecido, ele dedicou boa parte do tempo a denúncia e às rezas ao lado de sua comunidade. A família reforça a suspeita de que o fogo foi criminoso. “Aqui criticam muito, falam que a gente é rabudo, querem terminar com a nossa cultura. Tem gente dentro da aldeia que mora e não gosta da casa. Alguém quis botar fogo”, comenta Alda.

O espaço sagrado era chamado de Gwyra Nheengatu Amba, ou "Casa do pássaro de boas palavras". Era a última construção kaiowá para esta finalidade que resistia nesta terra indígena. Recentemente, foi realizado um projeto arquitetônico para reformá-la, mas não deu tempo.

Ao fundo, a casa de reza ainda em pé, na aldeia Jaguapiru, que fica a seis quilômetros de Dourados. (Foto: Fabiana Fernandes)
Ao fundo, a casa de reza ainda em pé, na aldeia Jaguapiru, que fica a seis quilômetros de Dourados. (Foto: Fabiana Fernandes)
Projeto da casa de reza segundo desenho recente feito por um arquiteto.
Projeto da casa de reza segundo desenho recente feito por um arquiteto.

Ali, quase todos os dias, comunidade e visitantes eram recebidos com um ritual de boas-vindas e cantos guarani. Índios com seus rostos pintados com urucum faziam seus rituais e tinham a estrutura como principal lugar para transmissão de conhecimentos da cultura indígena.

O local também era referência cultural da comunidade e já recebeu eventos como o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), o Kunhangue Jeroky Guasu, Aty Guasu, além de receber diariamente crianças para serem batizadas, benzidas, fazerem tratamentos médicos tradicionais e orientação espiritual.

Para dona Alda, que há décadas está dentro da casa e batalha pela sua cultura, o fogo trouxe um prejuízo histórico para os indígenas. Com a perda de objetos de culto, como xiru, yvyrai e mbaraka, onde os anciãos rezam, cantam e dançam, a comunidade pode ser prejudicada na colheita, o clima, alimentação e saúde. “O sentimento é de muita tristeza. Eu não sei como a gente vai fazer, porque a gente lutou tanto para manter essa casa e queimaram. Ali a gente fazia tudo que era bom”.

Representantes e amigos agora vão organizar uma vaquinha para reconstruir o espaço sagrados e devolvê-lo a comunidade, como forma de manter a preservação da memória coletiva e fortalecimento da resistência cultural.

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Na tarde de ontem, comunidade rezou em volta da casa destruída. (Foto: Fabiana Fernandes)
Na tarde de ontem, comunidade rezou em volta da casa destruída. (Foto: Fabiana Fernandes)
Indígenas tentavam apagar as chamas com mangueira. (Foto: Fabiana Fernandes)
Indígenas tentavam apagar as chamas com mangueira. (Foto: Fabiana Fernandes)
Perda é histórica e cultural, afirmam indígenas. (Foto: Fabiana Fernandes)
Perda é histórica e cultural, afirmam indígenas. (Foto: Fabiana Fernandes)
Comunidade se reuniu e protestou contra intolerância. (Foto: Fabiana Fernandes)
Comunidade se reuniu e protestou contra intolerância. (Foto: Fabiana Fernandes)
Interior da casa de reza, antes de ser queimada. (Foto: Fernanta Athas/Folha de São Paulo)
Interior da casa de reza, antes de ser queimada. (Foto: Fernanta Athas/Folha de São Paulo)
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